quarta-feira, 27 de julho de 2016

Reticências


A morte de todas as coisas,
Leva com elas o seu aroma, o seu açúcar,
Leva o seu cheiro, o seu açude.
Leva, leva e carrega como tornado
Ou tempestade, como vulcão,
Como enxurrada.
E não se importa com os que ficaram,
E não compensa com nada a falta,
É ignorante, e irritável.
Leva e exacerba o próprio curso.
Leva, leva, leva,
Leva e carrega,
Sem se importar com os que ficaram.
Porém não limpa,
Porém não varre,
Não tem tal força,
Não delimita,
O que é uma luz,
O que é memória,
O que é lembrança,
Pois do açude,
Pois do açúcar,
Pois do aroma,
E até do cheiro,
Mais vale o zelo dos que ficaram,
E reinventam na vida a morte,
O que se levou foi somente corpo,
Pois permanece, sob o manto da invisibilidade,
Algo sem cheiro,
Já sem açúcar,
Vazio o açude,
O aroma inócuo,
Repleto apenas de luz prateada,
Que é luz dourada, é luz de transe,
Luz de lembrança: nunca se apaga.
Que se arranquem os interruptores,
Que todas as lâmpadas sejam quebradas,
A luz responde: não tenho nada,
Sou toda sua,
E acendo sempre que na memória,
Um coração bate de lembrança,
(brilho da glória) e de saudade.
O que se leva é só o corpo,
Luz não se apaga,
Luz pirilampo,
Luz prateada,
Eu ergo sempre os punhos nos mares,
Deles retiro tanta saudade... E brilha sempre uma luz selvagem...

...Que não se apaga...



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Otto Scholderer.  

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