quinta-feira, 9 de maio de 2013

Percurso de uma tartaruga




Sabe quando andamos de lado
E esbarramos, dispersos, num vaso?
E descobrimos dentro desse vaso uma miúda flor?
Assim encontramo-nos.
Pois relutava em olhar dentro de vasos, de corações.
Não mais remexeria em relva e galhos e corrente sanguínea e batimentos cardíacos.
Havia caído.
Jazia-me caco.
Velho.
Retorcido.
Moído.
Gasto.
Mas eis que o vaso regenerou-me em planta.
Pude sentir a seiva, retornar ao sol, ao fundo.
Do oceano plano ergui a cabeça para dentro do vaso:
Um pequenino girassol de miolo escuro e brilhantes e esvoaçantes e douradas pétalas amarelas.
Um girassol fulgurante!
Girassol, querida, periclitante.
Calhou uma nuvem justamente sobre nossos tetos e sonhos.
Uma nuvem pesada, negra, molhou, molhou, molhou o vaso, a planta, o girassol, os sonhos, encharcados, mal se aguentavam de tanto pavor e medo.
Tempestades, raios, naturalmente assentaram as características sobre nós.
Não ignoro a violência da chuva, nem a necessidade da água para se manterem as vidas.
Só não contava com tamanho ímpeto.
Resultado: tornei-me pedra.
Novamente ando qual uma tartaruga, escondendo-me em casco.
E que se ele trinca, dou dois passos atrás, endureço-me assustado, mantenho o ar de covarde.
Tenho medo da dor.
Conheço-lhe bem.
Não desejo encontrá-la.
Mesmo como uma tartaruga o mundo não me escapa.
E de dentro do casco, por impulso, reajo:
Vou à luta, encardido, nu, feio, fraco.
Venha vida me encare.
Não estou pronto, estou farto.
Dos mistérios, das quedas.
Peço a mim só coragem.
Esconder-me de mim, já passou, passará.
Eu conheço esta dor.
Quero outras, novinhas.


Raphael Vidigal

Pintura: “Dom Quixote”, de Daumier.