sexta-feira, 24 de outubro de 2014

branco da página


quero uma arte sem capa, sem filtro, sem referência.
uma arte que se desfaça como purê de batata.
uma arte que se derreta como calda de chocolate.
uma arte que me sustente como vitamina de abacate.
e mais nada.


Raphael Vidigal

Pintura: "Nu", de Tarsila do Amaral. 

.


De vez em quando é bom chorar
                        Só pra aliviar
                                             o cansaço.

Raphael Vidigal

Pintura: "Mulher", de Wesley Duke Lee.  

Pirâmide


Só com resultados estéticos
Consegui um quadro perplexo.
Antes do término e do início
Estava escrevendo em fenício.

Só com resultados farmacêuticos
Consegui um quadro de apoplexia.
Depois do fim e da hemorragia
Estava escrevendo em reflexos.

Raphael Vidigal

Pintura: "Inverno e luva", de Paul Klee. 

Receita


Miasmas
Proparoxítonas
Duas muletas:
Junto todas numa compota.
Esfrego o que for de chaga,
Liberto o que for borboleta,
                                               E as desfilo
                                                                 obsoletas.


Raphael Vidigal

Pintura: "Ainda vida com maçãs e laranjas", de Cézzane. 

Malabarismo


Há no olho do homem a consciência da morte.
O pássaro voa no seu olho,
A cobra rasteja no seu olho,
A onça anda de quatro no seu olho,
Mas ainda há no olho do homem a consciência da morte.

Há no olho do homem a consciência da morte.
Vinicius escreve um soneto,
Tom Jobim uma melodia,
Burle Marx projeta um jardim,
Mas ainda há no olho do homem a consciência da morte.

Há no olho do homem a consciência da morte.
O circo chega à cidade,
Os pais acompanham os filhos pelos braços,
O vendedor de pipocas empurra seu carrinho e oferece pipocas,
Mas ainda há no olho do homem a consciência da morte.

Há no olho do homem a consciência da morte.
Uma mulher se despe em frente ao espelho,
Apalpa os seios, confere as celulites, apalpa a vagina,
Uma mulher se despe para o seu homem.
Mas ainda há no olho do homem,
E nos olhos de outros homens,
O que não há no olho do pássaro,
O que não está no rastejar da cobra,
O que não confere com as patas da onça,
Com o desenho de Burle, o soneto de Vinicius e a música de Tom Jobim.

       A consciência da morte.
Felizmente há o circo e as pipocas.

Raphael Vidigal

Pintura: "Bailarina inclinada", de Edgar Degas. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Boca do Inferno


o céu da boca tem estrelas, lua e aftas,
o céu da boca espia para baixo
                                                      e vê um lindo prado,
montanhas e a faringite,
o céu da boca é algo muito afastado, e tão perto,
que nem deus sabe se é feito
                                                    de teto, de palha, fumaça,
é um estado periférico.

o céu da boca ás vezes é forma concreta
                                                                       ás vezes é só soneto.
o céu da boca em alguns mete medo,
                                                                     noutros pede clemência.

o céu da boca é entre o azul e o vermelho,
              é algo assim, amarelo.


Raphael Vidigal

Pintura: "Automático", de Edward Hopper. 

A velha a fiar


O espaço de manobra era pequeno
            para a ambição do poeta
    pois então ele juntou cheiro e cor
            e desenhou um soneto
        o soneto era inda pequeno
            para a ambição do poeta
    novamente ele juntou cheiro e água
            e construiu um escudo
  com o escudo enfrentou verbo e trova
            e escreveu um amuleto
     o amuleto era pertence do tempo
             Que defasou o poeta.


Raphael Vidigal

Pintura: "A Condição Humana", de Magritte.  

balbúrdia


um tumulto inclemente
            de poetas
  de pássaros
            de rãs

            um tumulto inclemente
                        dois coaxam
              três voam
                        três escrevem

              sobre pássaros, poetas e rãs.


Raphael Vidigal

Pintura: "Autorretrato com Bonito", de Frida Kahlo.  

Iglus


Unicórnio tem olho azul?


Raphael Vidigal

Pintura: "O Circo", de Marc Chagall.  

Caça


A lânguida ave sem nome pesca na beira do rio.
Pula um peixe em seu bico, pula e se espatifa.
Dentro do bico,
do papo,
da goela,
do pescoço,
Desce o peixe às entranhas, desce a ave sem nome ao fundo do rio,
Outro peixe se espatifa, outra carne rosa de proteína acalma a fome do bicho,
acontecido de vida.

Raphael Vidigal

Pintura: "Campo de trigo com corvos", de Van Gogh. 

V


É preciso estar à toa, à deriva, para que a
poesia
           pouse no teu nariz.


Raphael Vidigal

Imagem: obra do artista plástico Leonilson. 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Gramática da horta (ou da aorta)


é nos entreveros que se descobre
quem nasceu couve-flor,
quem morreu hortelã.

Raphael Vidigal

Grafite: obra de Banksy. 


Conferência ou Tecnologia


A minha impressão
digital
é que estamos todos atrasados
(em termos de CAFÉ)
- expresso.


Raphael Vidigal

Pintura: "A Procissão Para O Calvário", de Pieter Bruegel, o Velho. 

Padaria


suspiro
            um sonho
                            doce

suspiro branco
                      de limão

            um doce amarelo
                                  sonho.

Raphael Vidigal

Pintura: "rosa", de Mark Rothko.  

Andy Warhol


o mercado lê a poesia
                                   ao pé da letra
                    e paga
            com mão de vaca.

a arte lê a poesia
                        com pé de coelho
               e paga
ao trevo de quatro folhas.


Raphael Vidigal

Imagem: Seleção de obras de Andy Warhol. 

Cirurgia


O pernilongo esmagado na parede
Deixa o seu rabisco para a eternidade.
É uma interrogação o que ele tem a dizer,
Ou exclama de dor?

O pernilongo esmagado na parede!
Tece uma arte plástica –
“                                      ”

Raphael Vidigal

Pintura: "Mulheres e pássaros à noite", de Miró.