quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Cinema mudo


No cinema mudo não te vi
Falava
A voz do coração
Entre dois narizes
Cujas bocas beijavam-se
E os pés
Pelas mãos
Flutuavam
Pois no cinema mudo
Os nossos sonhos
Como Charlie Chaplin
Começavam ao contrário
E eram eternos no início
E principiantes no fim
Pois no cinema mudo
Sem falar me ouviu
E me entendeste tão bem
A língua que falam os anjos
Não se escreve ou detém
São dois narizes
Sempre tocando-se
Como esquimós
Do além


Raphael Vidigal

Pintura: "Paisagem Noturna", de Richard Pousette-Dart. 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Rodopio



Meu amor não é meu, é teu
Não guardo.
Aí está ele,
Rodopiando pelos ares, vivo.
Por mais que eu não pegue
Ou alcance
Nosso amor
Trame


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Hélio Oiticica. 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Brilho


Brilho salgado brilho doce
Tua luz não se apaga espalha
Meus mares, meus ais, meus amores...


Raphael Vidigal

Escultura: azulejos de Adriana Varejão. 

Guardiã


Desculpa as dores da vida
Minha criança, minha menina, minha guardiã

Quero que a fruta
Doce da cor mais
Ilustre te penteie
Os cabelos e que
Neles o vento se
Encoste e a brisa lhe
Beije o dorso

Te amo: o desejo: me iludo


Raphael Vidigal

Pintura: "Vênus de Urbino", de Ticiano. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

FANTASIA


Pensei ter dito: o sorriso arde em sais
A carne,
Apodrece e morre.
Pensei ter dito: o abraço aperta os ais
As roupas,
Desfiam e mofam.
Pensei ter dito: ouça o coração
A moda passa.
Pensei ter dito: o erro é permanente
A vitória esgota.
Pensei ter dito: dizendo entregas, vais
A carapuça encobre.
Pensei ter dito: sapatos e acessórios
E corpo escultural
E saber matemático
Para ser amada?
A essência basta.
Pensei ter dito: independência é opinião
E não um automóvel.
Pensei ter dito: a política é necessária
E a rebeldia e o sonho são exercícios saudáveis para escapar
Dos moldes pré-fabricados
De repetir o óbvio.
E o carinho está acima de tudo.
Pensei ter dito: escolha o que lhe importa
Não professores ou faculdade
Vestibular não a torna puta ou casta
Mas a tua forma
Maleável, é reinvenção diária.
Pensei ter aberto um mundo de poemas, sons, imagens
A tocar este coração e em algum momento
Aliviar as dores,
E a vida se sentir leve e suportável
Pensei que eu tivesse dito, mas todas essas palavras calaram: porque o fato é mais importante e a fantasia não vale nada.
Desculpa os descaminhos, a escolha da palavra errada, o gesto mais duro, a força mais áspera,
Do coração de menino sem glória, febril e ingrato... 

Raphael Vidigal

Pintura: "O Balanço", de Jean Honoré Fragonard. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Abismo


“e fico mastigando a minha desorientação.” Caio Fernando Abreu

Entro: caminho entre o pântano
E o abismo das nuvens
Agarro-me ao galho ruço
Em que sinto fruir o espetáculo valoroso
Da infinita simplicidade
No entanto, refeito do susto
E ainda abismado, opaco, fundo
A poesia de desfaz e a necessidade que é real e é palpável
Não fictícia
Impõe o peso e a pata de elefantes. 

Raphael Vidigal

Pintura: "O embarque da Rainha de Sabá", de Claude Lorrain. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Considerações


Ninguém é bom o suficiente para ser amado sem ressalvas.

A profunda solidão de se estar junto.

Se alguns padres são mesmo casados com Deus só há uma alternativa:

Deus é gay.


Raphael Vidigal  

Escultura: Obra de Pietro Lombardo. 

Lista para o café da manhã


Gostaria de ser amado,

por meu humor debochado
por minha rebeldia infantil
pela minha irresponsabilidade fantasiosa
por meu contar impreciso, mirabolante, aumentando histórias
por ser covarde
por meu anacronismo na sociedade

pela criança que sou,
por minha fragilidade,
pela miséria humana,

por meus defeitos.

A dor só a quem se ama


Raphael Vidigal  

Pintura: "A Lição de Música", de Matisse. 

Lembranças


se ouço o roncar de motos na madrugada, lembro o teu: hum hum...
se ouço pássaros: a tua risada,
se ouço silêncio: teu beijo,
se ouço coração: nossa alma.


Raphael Vidigal 

Pintura: "Elasticidade", de Boccioni. 

Impossível



De que serve um amor impossível?

Lembranças...

Triste.

Lembra da gente deitado no chão após os primeiros beijos?
Lembra do sentimento daquele momento?

Há tanto tempo, não é...?

Ás vezes parece que foi ontem.
Sou só um pedaço de dor...


Raphael Vidigal 

Escultura: "Maiastra", de Brancusi. 

domingo, 15 de setembro de 2013

Saudade


Vai pela casa inteira
Os dentes escovando
Conversa com os bichinhos
E os bichanos...

Saudade dos
Olhinhos flamejantes
Da covinha rubra
Saudade.

Do sorriso espontâneo
A gargalhada incontida
Provocada
O ataque de riso
O ataque de beijo

Saudade.

Deixa ver você?


Raphael Vidigal

Escultura: "Red Stone Dancer", de Henri Gaudier Brzeska. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Fim


Respeito a eternidade das palavras fáceis e gastas e fracas. Como eu.

Apesar de tudo o sentimento é intacto. As dores e os buracos.

A música tocava já não era a mesma pessoa. Antigamente costumava ouvi-la com um aperto no coração de provocar embaraços.

Duas crianças perdidas, ...... ao brincar com o coração, ....... não obtiveram o perdão.

O sol áspero a conter certa dose de brutalidade.
Obcecado.
Esse amor insuficiente para nos manter juntos é demasiado sério, pragmático, enfadonho, longe da fantasia e do sonho, do mundo ideal.
Irreversível.
Me rasga a pele, range os dentes, ensurdece os ouvidos.
Os dedos sangram.
Escrever sobre a vida com paixão.

FIM.

Raphael Vidigal  

Pintura: "Vasos, cesta e frutas", de Paul Cézanne. 

Separação



Guarde a rosa que te dei,
Os poemas que escrevi
E as canções que lhe cantei.

Hoje só me resta liberdade...

E este amor cá dentro peito...


Pulando aprisionado. 

Raphael Vidigal

Pintura: "O Grande Canal, em Veneza", de William Turner. 

De vítima a carrasco à vítima



Se um sábio me perguntasse:
- O que você quer da vida
Ser feliz ou saber a verdade?
(Da vida; quero ser feliz
Da vida; saber a verdade)
Eu, o tolo, responderia:

Todo mundo quer ser feliz
Ninguém deseja machucar a si nem ao outro
Mas ás vezes é inevitável.

Vítima de meus próprios atos.
Carrasco involuntário.


(Desamparado)

Raphael Vidigal

Pintura: "Círculo Mágico", de John William Waterhouse. 

Auto-ajuda



Podemos ser simples, bobos, felizes. Detenha-se no essencial. Olhe para o coração como uma menina curiosa espia o teu cachorro dormindo.

Raphael Vidigal

Pintura: "A carta de amor", de Fragonard.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Percurso de uma tartaruga




Sabe quando andamos de lado
E esbarramos, dispersos, num vaso?
E descobrimos dentro desse vaso uma miúda flor?
Assim encontramo-nos.
Pois relutava em olhar dentro de vasos, de corações.
Não mais remexeria em relva e galhos e corrente sanguínea e batimentos cardíacos.
Havia caído.
Jazia-me caco.
Velho.
Retorcido.
Moído.
Gasto.
Mas eis que o vaso regenerou-me em planta.
Pude sentir a seiva, retornar ao sol, ao fundo.
Do oceano plano ergui a cabeça para dentro do vaso:
Um pequenino girassol de miolo escuro e brilhantes e esvoaçantes e douradas pétalas amarelas.
Um girassol fulgurante!
Girassol, querida, periclitante.
Calhou uma nuvem justamente sobre nossos tetos e sonhos.
Uma nuvem pesada, negra, molhou, molhou, molhou o vaso, a planta, o girassol, os sonhos, encharcados, mal se aguentavam de tanto pavor e medo.
Tempestades, raios, naturalmente assentaram as características sobre nós.
Não ignoro a violência da chuva, nem a necessidade da água para se manterem as vidas.
Só não contava com tamanho ímpeto.
Resultado: tornei-me pedra.
Novamente ando qual uma tartaruga, escondendo-me em casco.
E que se ele trinca, dou dois passos atrás, endureço-me assustado, mantenho o ar de covarde.
Tenho medo da dor.
Conheço-lhe bem.
Não desejo encontrá-la.
Mesmo como uma tartaruga o mundo não me escapa.
E de dentro do casco, por impulso, reajo:
Vou à luta, encardido, nu, feio, fraco.
Venha vida me encare.
Não estou pronto, estou farto.
Dos mistérios, das quedas.
Peço a mim só coragem.
Esconder-me de mim, já passou, passará.
Eu conheço esta dor.
Quero outras, novinhas.


Raphael Vidigal

Pintura: “Dom Quixote”, de Daumier. 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Cerol



Há, num universo imenso de possibilidades,
Algum misterioso enredo a permitir
O encontro
Entre duas específicas,
E então desesperançadas,
Almas, se preferir.
Quando não mais almejam nada da vida,
Talvez, seja o segredo, tão banal e equivocado
Que o ignoramos
Tanto quanto os garotos de periferia
A passarem cerol na linha do papagaio.
Mas ele há de cortar pescoços.
Ah o amor sempre corta pescoços.
Sejam os meus ou os nossos.
Ou de ambos.
Nesse caso, andamos sem cabeça de um lado a outro,
E o coração ficou como que tremendo, solto, no ar, sem dono.
O amor é, sem dúvida, o papagaio.
(agora mudo)
E o cerol, o orgulho.

E não há mortes e noticiários e repreensão dos pais e cacetada da polícia que impeçam esses meninos insolentes a desistirem de passar cerol na linha, e a deixarem fluir por aí apenas por esse prazer, sem cortar as nuvens ou o sol e teu brilho intenso...


A pressa dos miseráveis...


Raphael Vidigal  

Foto: "Pipa Papagaio", autor não identificado. 

O dragão



Esse o dragão
Adormecido da loucura
Esse o nevoeiro
Encoberto por cachos de uva
Desperto-os e avanço
Em direção ao medo
Em direção ao pranto
Minto, enquanto...

Esse o dragão
Encoberto por cachos de banana
Esse o nevoeiro
Adormecido da noite insana
Solicito-os e almejo
Na procissão do espelho
Na procissão do santo
Sinos, e imanto.


Raphael Vidigal

Pintura: “Hera”, de Francis Picabia. 

Pecado



Deixe-me voltar a ser criança
Que a converta intimamente numa rosa
Eximida dos pecados de outra musa
Pois que a dele é do passado
E a minha é pura
Pois que deles pus-me outro
E agora volto
A ser criança

Deixe-me voltar a ser tua rosa
Que a convença externamente numa dança


Raphael Vidigal

Foto: “Retrato de Martha Graham e Bertram Ross”, de Carl Van Vechten. 

Do Sagrado ao Profano




Homem
Hímen
Húmus
Herpes
Harpa


Raphael Vidigal

Pintura: “O Enterro do Conde”, de El Greco. 

segunda-feira, 11 de março de 2013

A Rosa



Desejo protegê-la
Num abraço de aço
Envolvê-la
Num abraço de planta
Ser-te força e carinho

Mas quem sou eu para desmentir as palavras da própria rosa?
“Apenas” a amo
Conheço-lhe sabor e veneno
O abrigo e a expulsão.
E digo-lhe: és humana.
Cujo pecado redime o mundo,
cora-lhe as ancas.

Pois que ela, A Rosa, saltita
por entre arbustos,
pula o muro,
arrancando-me a cruel felicidade.

Espero que nos banhemos juntos,
Aguentemos ao sal,
E recebamos, de boca e coração abertos
A água serena do planeta.

Almejo a fraqueza e contemplação de um velho somente a teu lado.


Raphael Vidigal

Imagem: Rosa bordada por Cláudia Lis. 

Cartão de aniversário




Pai,
Posso dizer
Que as aparências
Nos conclamam,
E a cada dia
Que me sinto
Mais parecido
Contigo,
Mais me “orgulho”
(essa palavra de pano)!
Ante o sentimento
Que plana!

Beijos do seu filho,

Te amo!


Raphael Vidigal

Escultura: “São Francisco de Assis”, da catedral de São Sebastião, Rio de Janeiro, por Humberto Cozzo. 

Pétala



Proponho que a gente nunca mais se fale...
            A palavra gasta mostrou-se artifício inócuo na procura vã de uma compreensão
            Uma forma de inteligência defasada: a palavra.
            Proponho o silêncio absoluto.
            O mais amplo de todos os silêncios ouvidos.
            Entre duas desérticas almas nem o pingo do oásis imaginário irá soar.
            Somente o reflexo de duas conformidades tocando-se no escuro, na sombra, na ilusão, no desconhecimento contínuo e inalterável:
            O sonho.
            Escutei essa profecia
(dormindo).
            Tua boca tocou a minha: papoula, polpa, fruta: escorrendo, líquida, indescritível. Silenciosa.
            Acordei, vesti pijama.
            Somente senti-la – não pensar, nem tergiversar, muito menos: dizer.
            Como uma rosa desfolhando-se, uma pétala.
            Abrindo-se:
           
            Raphael Vidigal 

Poemar




O boi
muge
pra galinha
cacareja
O galo

o gole
no gargalo
da cachaça
feita em casa
por Quiquito,
o bardo.

Maria canta
uma profecia
rosa da infância
Seu Geraldo
e seu arado
capinam longas viagens.

Mosaico de vozes.
Coral disforme.
A camponesa colhe morangos no campo.
Sobre uma bola a bailarina está: se equilibrando.
O sorriso atrevido
no rosto,
no corpo,
na alma: da mulher: meu amor: cadê: café
?


Raphael Vidigal

Foto: “A colheita de café na fazenda Irmãos Dutra, Manhuaçu, Brasil”, de Sebastião Salgado. 

Barquinhos de verde e azul



Imagino aqueles barquinhos de jornal, feitos por crianças inábeis, em banheiras que em suas férteis imaginações despudoradas representam a imensidão do oceano ainda a ser navegado...

Penso que “a gente” devia ser eterna criança
E as expectativas deitarem-se
Em nossos colos
Como pássaros de
(bela plumagem)
Verde e azul

O azul da pureza
Do verde, esperança

Pois que o maior prazer da vida, as pessoas teimam em não descobri-lo, é simples, gratuito, mas nem tão fácil encontrá-lo, pois a companhia é o fundamento de tudo: rir, imitar personagens, cultivar palhaçada. O maior prazer da vida.

Chaplin será eternamente nosso maior confessor.


Raphael Vidigal

Ilustração: "Golfinhos no pôr do sol", de Carmen Thiago.