segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Horas


Meu relógio biológico
tem horas de anarquista
e outras de funcionário.

Meu relógio biológico
impera igual dentista
e outras como operário.

Meu relógio biológico
não segue a biologia
é antes pneumático.

Meu relógio biológico
por horas reza e ora
em outras só jejua.

Meu relógio biológico
é um livro de retratos
(mas falta a capa dura).


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Kokoschka. 

corpo de aço


prefira sempre o
gesto à palavra
porque a palavra
tem corpo de cristal
e o gesto, corpo de
aço

prefira sempre o
corpo à palavra
porque a palavra
gesticula pelo ar
e o corpo, gesticula
pelo chão

prefira sempre a
palavra ao gesto
porque a palavra
age pelo corpo
e o gesto fere
igual palavra


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Pollock.

Êxtase


Quero estar feliz
como um cachorro num dia de domingo.
Sem saber que é domingo,
sem saber que é um cão.
Como quem olha para a imagem refletida
(sem espelhar-se em ninguém)
e admira-se com a maravilha da vida!
Ao léu, em vão...


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Miró.

Filho de Peixes


Um peixe sonhou um sonho
Que fosse um sonho sem som
Porém a memória de peixe
O traiu e enganou
Logo antes que se lembrasse
As trombetas soaram
(mesmo debaixo d’água)
Soaram também as cornetas
Os tamborins e os pandeiros
Nessa estranha algazarra
Em que tudo se permitia
Peixe-espada chamava a duelo
O tubarão e a baleia
E de repente era um sonho
Cheio de voz e de cor
Pois mesmo o coro de pedras
Eram anjos em clamor
Com algas cobrindo as asas
Sobre as cabeças as conchas
Ostras e pérolas brincavam
Se armavam em brincos e harpas
Assim nesse mar convulso
Que fora um dia sereno
O sonho do peixe insone
Inaugurou um novo mundo!
Por isso se diz ainda
E foi a partir dessa história
Que filho de Peixes nada
Mesmo sem vento ao sabor...
E a constelação que ele canta
É a que o pai ensinou...

Raphael Vidigal 

Identidade


Quem me vê não explica
O porquê enxerga você
Na verdade até tenta
Mas não alcança a origem

A identidade que trazemos
Como em espelho refletido
Vai além do que está nele
Vai, muito mais, por dentro

Não é pela cor dos olhos
Nem o nariz que segura aos óculos
Na verdade para onde olham
E a inquisição que provocam

Não é o tamanho das mãos
Mas porque seguraram livros
Não está na forma das orelhas
Antes pela forma dos quebra-cabeças

Não é sequer pelo gênio
Pela calma ou pelo riso
Menos a cor vermelha
De quando a felicidade grita

Talvez, seja o coração
Que não se vê nem se explica
Mas que em certa estação
Nos amalgama e incita

Pois somos tão parecidos
Que parecemos mãe e filho
Como cordão e umbigo
Que se conhecem desde a barriga...



Raphael Vidigal

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

aleluia


sem piedade despir-te
exibir o ventre e nele
colocar a fé do meu
corpo


Raphael Vidigal

Pintura: obra de El Greco.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

realejo


guardo o teu beijo
como um prêmio
no meu realejo
das horas de glória

mas para os que pensam
que seja de vitória
esclareço: é ele o maior símbolo
da minha derrota

o que está vivo não
se enclaustra nem
fica preso a peito ou papel
só guardamos o que morreu

o teu beijo ainda em mim
é feito à taxidermia:
embora a pele exista aqui
o gosto há muito esvaneceu...


Raphael Vidigal

Desenho: Obra de Paul Cadmus. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

boca fechada


nessa vida de cão
eu sofri pra burro
fui chamada de galinha
e engoli muita mosca


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Pierre Bonnard.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Imberbe


uma ponte de safena
um sorriso nervoso
do coração até os joelhos
do âmago ao estômago

um sorriso de safena
uma ponte até os joelhos
do coração nervoso
ao âmago do estômago

Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Fernando Botero.

domingo, 16 de outubro de 2016

Anistia


O público não tem rosto.
Mas tem coração.
O aplauso é quando seu coração pulsa.
Donde o crítico não tem coração.
Mas tem rosto.
A crítica é sua face branca.
Eis a melhor maneira de testar a personalidade de uma pessoa:
Combinar entre amigos contar uma “piada” sem sentido ou graça,
Da qual todos deverão rir ao “final”. Se esta pessoa acompanhar o
Riso, suas opiniões tendem a ser levadas pela necessidade de pertencimento...


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Modigliani.

sábado, 15 de outubro de 2016

Pluma


Existe um mundo só dos sonhos...
De luz disforme, e olhar acrobata...
Um lugar aonde a luz tem cheiro...
E é possível ouvir a cor dos pássaros...

Lá, aonde só chegam os inconsequentes (!)
E não se conjugam equações matemáticas (?)
O verbo é carne e o sangue é metáfora (?)
Prisma a pluma só pelo sabor do abraço!

“Em que nada é dito, mas tudo é experimentado”
– A cobra oferece a maçã –
E não existe pecado.

Existe um mundo só dos sonhos...
Criado para ser poema
,Na falta de arquiteto hábil,



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Modigliani.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Semanário


No domingo nasço-me inteirinho
Na segunda, só alguns pedaços
Na terça, estou o capim do mato
Na quarta, sou um bolo de aipim
Na quinta, chove em meus tomates
Na sexta, planto a couve e o alface
No sábado, recolho a tempestade
No domingo, nasço-me inteirinho.



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Inimá de Paula.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Palavra


a Verdade
de que vale,
quando leva
a mortes,
destruições,
arames?
melhor
contemplar
as nuvens.
a Verdade
de que vale,
se separa,
se endurece,
se desune?
melhor
fomentar
arbustos.
a Verdade
de que vale,
se traz peste,
se tem lepra,
se põe fome?
melhor
amalgamar
os sonhos.
a Verdade
de que vale
se é moeda,
se se vende
se se compra?
melhor dar
o milho
aos pombos.
a Verdade
de que vale
se também
é invenção do homem
sendo tal
tão frágil
quanto seu punho?
antes a morte
sem Verdade
que esta vida
de Verdade
é sonho
e nuvem...
fantasia
de mentira
e verso e curva...



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Fernando Botero.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

As Mil e Uma Noites de Sono


Quando sonho sou Napoleão
Desbravo os mares, travo e
Venço batalhas contra os leões.

Quando sonho sou amante
Inveterado, de mil e uma
mulheres, sedentas por meu amor.

Quando sonho tenho mil
Escravos, olhos verdes e
O Tejo por meu pastor.

Mas quando acordo sou apenas poeta de outros mundos...



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Georges Seurat.

Ir-se


Ficaram suas lembranças
Descansa o coração
Ficaram suas memórias
Descansam as aflições
Descansa o seu corpo, com o corpo seu sorriso
o que ficou foi sonho
ou sonho é o que se foi?




Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Georges Seurat. 

o beijo


na Rússia o beijo é como um abraço
no Brasil o beijo é aperto de mão
na Grécia o beijo é de Dionísio
em Hollywood o beijo é de Platão
beijo na primavera é Klimt
beijo de outono é cristão
beijo, beijo, beijo
quem te viu me disse
que mesmo triste é
fiel
à paixão



Raphael Vidigal

Foto: "O Beijo", de Alfred Eisenstaedt.

Manoel de Oliveira


O pico mais alto da madrugada
o seu cume
é dentro da alma dos homens





Raphael Vidigal

Imagem: cena do filme "O Estranho Caso de Angélica", de Manoel de Oliveira.