sábado, 30 de dezembro de 2017

Prazer


A única e mortal função da arte é propor a liberdade ou, ao menos, alguma libertação



Raphael Vidigal 

Pintura: obra de Gerda Wegener.

Depois


Ninguém me tira do meu sono imaculado
Estou tão alva, tenho a cor do desencanto
Nada me vinga, arrepia e nem me passa
Perdi o corpo e as aflições da vida humana
Morrida jovem permaneço sã nos sonhos...

Não tenho a mácula do vidro que foi gasto
A transparência me acompanha em meio às nuvens...
Você me olha e vês a flor inda no cabo...
Ninguém me tira do meu sono imaculado
Estou tão alva, tenho a cor do desencanto...


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Paula Modersohn-Becker.

detetivesco


a silhueta
não é sombra
pois contorna
e acompanha
o mesmo passo
da autora

a silhueta
é o por fora
está na vulva
envolve a saia
dentro da bunda
tão leda e ágil

feito alma: ela simula: e dissimula


Raphael Vidigal

Imagem: obra de Yayoi Kusama.

psicologia


esquece essa dor ali
lá vem outra
pimpona
desgovernada
balança o rabo
estende a pata
baba que nem
quiabo
pronta a lhe abraçar feito
mato
cresce pra todo lado
esquece essa dor clássica
lá vem outra
moderna
contemporânea
mal saída das fraldas
que baba e arrota e caga
tão nova
e já se acomoda
na sua alma


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Lavinia Fontana.

Adeuses


dei um olho aqui
            uma boca pra lá
ossos por todo lado
pau, fígado, bile, pâncreas
tornozelo, nariz, pelo, músculo
carne da barriga, da panturrilha
carne do céu da boca pra lá
            outro olho aqui
duas orelhas por todo lado
assim alquebrado
              permaneço: espalhado



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Tamara de Lempicka.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Enquanto Existir O Tempo Haverá Saudade


Ter a vida ceifada logo cedo
Por um golpe de azar
Rajada de vento
Ainda vejo teus olhos orientais
Em todos os meus momentos...
Ter a vida por fora,
(E você por dentro)

Ter a vida ceifada
Logo cedo
Por um golpe do destino
Rajada de azar
Ainda vejo os meus momentos
Nos teus olhos orientais...
Levo a vida por dentro
E você por aí afora, nu
Vento

Ter a vida ceifada
Desde o começo
Tudo amanhece com morte
Todo final é fingimento
A vida se embrenha no vento
Invisível, disforme
Pois é vã, sentimento...
Levo você no meu bolso: que é fora e é dentro



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Josefa de Óbidos.

simbolismo


tu que foges de si mesmo
e que já não tem espelho
aceita o medo sem medo
morre de amor sem meneio
o tempo abre com sua lâmina
o mês de janeiro –
todo dezembro
é começo


Raphael Vidigal

Imagem: obra de Yayoi Kusama.

Leito no ar


Se não fosse assim meio louco
Meio saltimbanco, meio malandro

Se não fosse assim meio anjo
Meio demônio, meio sujo

Se não fosse tão meio tudo
Partido por espada e rosas
Estaria inteiro e sem luto

Como uma cama sem asas...


Raphael Vidigal

Imagem: obra de Abigail de Andrade.

Danar


Ninguém vai me impedir de ser feliz!
Nem a morte da donzela,
Tampouco a culpa da meretriz.
Se estiver proibida a festa
Jogo o mundo num copo de gelo
E o bebo com uísque ou gim.
Convido a morta donzela
E me desculpo à meretriz... 


Raphael Vidigal

Imagem: Obra de Van Gogh.  

Cacaso


Até que se fique
Provado o contrário
Não se sabe se o fim
Do recado está no
Começo da palavra
Ou no meio da
Pedra se tinha
Um caminho


Raphael Vidigal

Imagem: foto do poeta Cacaso.

Pessoal


Não sou pop
Nunca serei pop
Não posso querer ser pop
À parte isso tenho em mim
todas as manhas do mundo


Raphael Vidigal

Imagem: foto do poeta Chacal. 

Típico


a ironia é uma senhora mais antiga
que amarrar cão com linguiça
tem artrite, febre alta e reumatismo
ninguém é páreo para ela senão
a trova, mais madura e consciente
pois além disso ainda toca bandolim



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Leonora Carrington. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Trejeitos


O poeta dorme tarde.
E só acorda depois das nuvens.
Nada o tira da cama.
Antes do tempo das uvas.
É só com a parreira farta.
E o cálice gordo de água na boca,
que o poeta, no vagar de um gato,
começa a espreguiçar pelos braços.
Logo em seguida confere o relógio de bolso,
(o seu tempo é sempre outro)
e chega a uma conclusão inafiançável:
haverá mais tempo de uvas.
Melhor permanecer de pijama.
E abraça o travesseiro como quem captura sonhos.


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Primavera das Neves.

oleosa


a poesia engraxa os sapatos com óleo de amêndoa.
a prosa engraxa os sapatos com óleo de coco.
a vida passa descalça com óleo de cozinha, vinagre e azeite.


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Florbela Espanca.

pressuposto


macambúzio
e inzoneiro,
cadê – o sentido
das palavras?
cadê, o meu
dicionário...


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Wally Salomão.

sujeito


quem tem a alma com chuva
mesmo depois que ela seca
continua pingando


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Carlos Drummond de Andrade.

objeto


uma alma com chuva
mesmo depois de seca
permanece pingando


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Manuel Bandeira.

Esperança


hoje, nada
ontem
um choro abafado
amanhã:
uma cova funda


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Ana Cristina Cesar. 

olho


o
umbigo
bígamo
e
o
monogâmico
ânus
entraram
em
acordo
leonino
para
que
o
âmago
fosse
sempre
destino


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Allen Ginsberg.

Feroz


E me sentir mais homem.
E me sentir mais cão.
Ao te cravar as unhas.
Ao me deitar no chão.
Ao me postar de quatro.
Ao te lamber as partes.
E me sentir entregue.
E possuir teus vãos.
Ao te enfartar em vida.
Ao te fartar do pão.
E saciar o bicho.
E saciar a fêmea.
E saciar o macho.
E saciar o cão.
Ao me sentir mais gente.
Com as veias aparentes.
E o ar a pleno pulmão.
Desfigurar teu ventre.
Abrir os interstícios.
Sentir como quem entra.
No dentro feito cão.
Com o osso pela boca.
E a baba em pelo ensopa.
O que é meu e nosso.
Pois já não tem sultão.
E te sentir inóspita.
E me sentir teu hóspede.
E oferecer a lança.
Que rasga à contramão.
E estar como quem caça.
O rabo feito a cobra.
O rabo feito o cão.
Comer o teu chocalho.
Sugar da pele o suco.
Conter do lábio o sal.
Extraviar teu barco.
Te debruçar no cálcio.
Puxar-te à embarcação.
E me sentir mais homem.
Deitado nu e casto.
Ao ver-te nua e casta.
Após a extrema unção.



Raphael Vidigal

Imagem: foto de Arthur Rimbaud. 

vela


lava os teus anseios
deixe que o flagelo
te devolva
ao útero materno
lava e depois cessa
o que está à tona
é só a chama
dos que
velam


Raphael Vidigal

Imagem: foto de Cecília Meireles.