segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Oração para o vovô Chico



Nada nos prepara para a morte
Nem a doença, nem a idade
Quando finalmente ou
Rapidamente chega
O espanto da morte é igual.
Uma manhã indo para o trabalho
A morte correu para me alcançar
E disse baixinho, no meu ouvido: vim buscar o teu avô.
Então não mais o riso franco,
O olhar sereno,
A fala doce, recheada de ironias,
Os modos de criança
Que dizia o que pensava
Amaciando o peso com humor
A lenta caminhada
Que desacelerava carros e relógios de pulso
O dedo pousado sobre o queixo para lembrar do esquecido
A face rubra, vermelha como um pimentão,
Quando a emoção lhe alcançava a alma?
A Vida apareceu de pronto
Então compreendi
Mais calmo
É exatamente o contrário
Agora condenso esses momentos
Com a luz eterna do que se foi.
O vovô Chico dos meus 12 anos
Que agarrava as bolas que eu chutava no gol
É o mesmo que, aos 88,
Caminha com calma e, com a mesma calma,
Atravessa a rua de sua casa
Ignorando qualquer importunação.
Para sempre os seus pés têm asa
E o asfalto por onde passa
São nuvens feito uma rural...
Onde cabem todos os filhos,
Netos, a bisnetinha Olívia,
Irmãos, irmãs, primos e primas,
Amigos, amigas, cabe até o Juvenal
Tios, tias, genros, cunhados e noras,
O seu papai e a sua mamãe,
Anjinho Gabriel, Vovó Lena
E os próximos que virão.



Raphael Vidigal

Imagem: Arquivo Pessoal.

Pardo



Será que o meu
destino já está
traçado?

E eu apenas
O preencho
Ao largo?

(Feito um boneco
de ventríloquo
a mão de Deus
guia o pároco)

(feito uma tartaruga
no casco – caminho
em passos reptilianos)

(feito o globo ocular
de um cego
onde toda superfície
é branca)

(como no útero
infértil – como
na seca terçã)

(como o silêncio
do não
como o barulho
dos vãos)

(como quando o
abismo estremece
quadris do passado)

Não há nada
dentro do
envelope pardo...

a não ser uma mão
cansada
cheia de verrugas...

diante de uma boca
aberta
nutrida de cáries

mordo a maçã do pecado: adão
e Eva me aparecem macacos...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Frida Kahlo.

bálsamo



já não
devemos
nada um
ao outro

talvez por
isso a vida
tenha se
tornado gorda

como o óleo
que molha
nossas banhas



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Artemisia Gentileschi.

Guarda-chuva



o contorno
dos olhos

o vazio
da boca

o espaço
em
branco
da barriga

tudo
prenhe
de
esperança



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Renoir.

Angélica



o peito é um chafariz
jorra leite para a boca faminta
a arquitetura esférica
guarda a placenta
proteínas, nutrientes, sangue...

a bolsa estoura...
as pernas se
abrem – tudo se dilata
uma criança
mama

o peito é vazio
a arquitetura, vaga
dentro de uma grávida
há apenas silêncio
e lágrimas



Raphael Vidigal

Imagem: cena do filme "O Bebê de Rosemary", com Mia Farrow.