segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

epiderme



coisas que desapareceram
permanecem no meu peito –
não há preparação para a
morte,
cada
vestígio
de vida...
escorrega por um anzol e
me vem como isca acordar
no meio da noite –
riso de vergonha,
rubor de medo,
palpitações de um músculo
não pertencem a quem se foi
mas, ainda assim, coisas que
desapareceram permanecem
no meu peito
como uma ferrugem
o tártaro no dente
sobre a parede – branca –
o mofado, de antes de existirmos
você, eu, o outro e todos os antepassados.



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Jackson Pollock.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

barbatanas



dentro do olho há um nódulo
no meio da boca uma nódoa
a névoa toma conta do nariz
nada permite dizer – que há
uma nuca para aquele corpo



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

descanso



parar de sentir azia
parar de tomar juízo
parar de olhar o céu
parar de fitar o abismo
parar de estar contente
parar de ficar contrito
parar de estar feliz
parar de buscar a felicidade
parar de sentir dor
parar de esquecer a dor
parar de sentir prazer
parar de sonhar
parar de querer sonhar
parar de pensar
parar de querer
parar de desejar
nem por um segundo
estar morto.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Goya.

Lavabo



Ao molhar os olhos de manhã
caem-me as mágoas, rancores,
pencas de remorsos, dúzias de
aflições, angústias e toda sorte
de azares, porém, permanece
ali, intacta, dentro das pupilas
redondas, cacheadas das tais
olheiras rubras, a vida indecorosa
– não preservada de dores e gozo.



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray.

retrátil



nostálgico e ansioso,
caminho entre o passado
e o futuro – de um lado eu
avisto a sombra, do outro
meu surrado guarda-chuvas –
enquanto o  presente brilha
feito um pirilampo –
mas meus olhos não o retém
nem por um segundo.
Permanecem divisando
a sombra e o guarda-chuvas...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Paul Klee.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Incenso



O recanto escuro e úmido
entre os mais recônditos e
curvos, no meio de tripas,
esmolas, intestino grosso,
baço, fígado e furúnculo
é onde guardo o seu choro
de despedida e aquela fina
lágrima que não se sabe
como mas molha os meus
interstícios de cimento e húmus.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Goeldi.

Melado



Tenho o espírito acordado e doce,
pronto para uma primavera mansa.
Deitado sobre as ramagens da praça,
as folhas me enovelam numa valsa.

As fibras coagulam em seu compasso.
Os pés estão descalços e as mãos
alcançam algo inalcançável,
 então suspira em meio a um branco

cor de açúcar sem reparos.
Alargam-me os ombros e as cócegas
se espalham pelo corpo, começam
pela alma e enfim se encontram.

Contraem-se em espasmos.
Os músculos dos óvulos.
As convulsões do parto.

O mel que era das flores
espirra uma criança mole e fraca.
Agora tens um novo e fugaz refúgio:
O mundo e seus odores

e nada
deterá o seu naufrágio.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Picasso.

Sepultamento



Num relance o vejo amedrontado.
Diante da maquinaria do mundo.
É obtusa a tentativa de escapar.
O robusto espaço comprime o
seu pequeno corpo. O barulho
não cessa um minuto e o filhote
está morto. Tê-lo salvo seria mais
digno do que escrever esse poema.
Sua morte é inútil como qualquer outra.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Modigliani.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Oração para vovó Lena



Filha do coronel da cidade
Ela cede aos caprichos do
Rapazote que até os doze
anos de idade andou com
os pés no chão, descalço.
Depois rumou pelo mundo, e
trouxe de cada lugar por onde
esteve uma lembrança em
forma de moeda para os
seus netos: Itália, Vaticano,
Portugal. A fé católica se vê
Expressada nos 9 filhos que
Carregou, os nomes se repetem
Como uma oração: os homens são
Todos José: Eustáquio, Antônio,
Eduardo, Mauro, Roberto e
Geraldo. As mulheres são
Todas Maria: do Carmo, de
Fátima e Cristina. E ela mantém
O rosto convicto, a fé fervorosa
Em torno do terço que nunca lhe
Escapa das mãos. Quando sorri
É de lado, quase desconfiada.
Essa senhora é a menina de sua Piranga.
Onde ela eternamente reza por todos nós.


Raphael Vidigal

Mancha



Um dia seremos só
a sombra de um passado
sem contexto...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Monet.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Canto



Uma celeuma
Sem eira nem
Beira. E mais
Parecia uma
Segunda-feira



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Henri Matisse.

Conto



O ábaco não mede
A cor das prímulas...
O magma do mogno
Salta as fímbrias!
A bétula é entre
A flor e a filigrana
– E as Filipinas –
(sobrevoa uma libélula
cor de tinta)
E nada disso
A
Poesia ensina...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Mark Rothko.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Gesso



O tempo de conciliações acabou.
Eu me lembro de ser muito pequeno
e ainda não ter olhos de realidade.
Diante de uma cesta de frutas,
as cores tinham mais interesse do
que os sabores, e ambos se lambuzavam.
Amarelo tinha gosto de sol coalhando no mar.
O vermelho pinicava igual a superfície das
roupas no varal. E o roxo das uvas imitava
as bochechas das meninas com timidez,
escondendo os seios por debaixo de camisetas
largas. Porém o tempo de conciliações acabou.
Hoje se me precipito sobre uma pedra sei
de sua dureza e da incompatibilidade entre ela
e os seres humanos. Reconheço, de longe, qualquer
tentativa de uma criança alcançar o céu com
suas mãos cheias de sonhos e fico me perguntando
quando, afinal, chega o dia em que reconhecemos o
vazio da morte. Porque o tempo de conciliações
acabou. Prostro-me na frente de um pote e
observo todas as suas condições. Ele é cilíndrico,
com leves angulações, possui uma base larga e
estreita é a sua boca. O rótulo gasto denuncia
o seu tempo de vida, assim como os vincos no
rosto de um velho afirmam o estado decrépito de
seu corpo. Começo a pensar naquelas garrafas
de vinho e do sumo que se solidifica no fundo delas,
e então percebo que a memória, como esse sumo,
só se petrifica quando o objeto de desejo esvanece.
E que o momento do prazer é efêmero, quando
escorre o vinho nos túneis da garganta, mas,
depois disso, aprimora-se uma dor latente de ressaca.
Dentro do pote não existe nada.
Eu vejo o meu rosto dentro dele,
feito num espelho arcaico.
Apesar de não ser exatamente velho,
é um rosto antigo, cansado, com uma
expressão desesperançada que se
percebe nesses olhos baços.
Eu olho para algum lugar que já não
me recordo, mas nele existe uma menina
que me acena de longe. Eu não encontro
sua expressão, não consigo distinguir se
ela me acena em sinal de despedida ou porque,
ao contrário, comemora a minha chegada.
Ela permanece acenando, acenando, acenando, por uma eternidade...
com uma mão tão branca, tão branca, tão distante
que parece ser feita de gesso por algum escultor.
O tempo de conciliações terminou.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Pablo Picasso.

Vendaval



Derrama o mel
das varandas
por baixo das
saias das meretrizes

Derrama o pólen de dentro do miolo de girassóis tremulantes
dentro das varizes

de velhas senhoras espasmódicas
no crânio de coronéis caquéticos brochas
e infelizes

Derrama o âmago
no ínfimo – a agulha
que vai fundo no fio...
Tudo isso eu lambo
chupo engulo:
como se fosse
 infinito



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Frida Kahlo.

Éden



Aqui debaixo
nada me pega
nem me acolhe.
Estou sob águas
quentes e moles.
Sem atravessar
o meu corpo elas
tocam minha alma:
que abre seus poros
para uma calma morte.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Mark Rothko.

Garçom



o sinal de vida em ti é frágil
e estridente –
como um copo de vidro tilintando
sobre o balcão.
Há uma chuva perene,
caindo de gota em gota e o meu
desejo é pegá-la entre os dentes
para comê-la como se degusta
uma fruta
feita de casca,
semente,
caroço
e sua polpa
que me escorre
pelos testículos
como o suor da
puta




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Paul Gauguin.

lapso


eu nunca entendi
e ela também nunca se explicou
por que levar-me àquele estado
por que deixar-me como deixou...

na noite da frondosa árvore,
despencou do galho uma flor...
eu a colhi feito um pássaro,
ela a abrigou no busto com calor...

dentro de seu busto ainda haverá
ao menos o cheiro daquela tarde?
se era primavera ou outono me esqueço...
o tempo do inverno aquela imagem congelou...

agora busco nessa imagem gasta
os olhos tornados foscos,
a boca sem nenhum langor...
o quê de pássaro, árvore e flor...

meu braço caça o atento lume, mas
não alcança o que se esquivou,
sequer o vento que o espalhou...
os lábios se calcificaram como gaiolas de osso...

fica entre nós esse segredo amargo
que é feito a morte para quem se foi
diante de sua inexorabilidade dramática
                                              eu só pergunto porque vivou estou...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Matisse. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Névoa



Sou muito sonhador –
Toda noite algo me vêm aos olhos,
quando os fecho para o descanso.
Ontem, por exemplo: um dinossauro
Pousou com a sua calda, como se dotado
de asas, bem sobre os meus pés descalços,
e puxou-me as orelhas tão alto, que eu jurei
ter um troço! Mas o dinossauro era simplesmente
uma tartaruga, com o casco pintado de esmalte,
imitando as unhas de minha tia Laura.
A vida desfeita da névoa, do sonho da noite anterior,
trouxe-me a morte de tia Laura: ela, uma defunta,
a exemplo dos dinossauros. Só que eles morreram
pelo meteoro, enquanto ela descobriu tardiamente
um câncer no ovário. Enquanto persigo a tartaruga
as cores de sua armadura modificam-se perante
meus olhos... já não distingo se os tenho abertos
ou cerrados...



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sensualidade



Pego no escuro
Tua silhueta
Almejo ter a disciplina de um monge
em tardes quentes
nos largos
por entre as
coxas do teu regaço
apalpo as nádegas com a
circunspecção de um pároco
enovelo-me dentro de recônditos
escuros e melados
tateando com o paladar
e enfiando com o viés do tato
tudo o que seja língua, estupor,
sangue, náuseas, dentes
– mole suor e vidro quente –



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Magma


lua borrada de ouro
coberta com açúcar
cristalizado
é aniversário de
Deus
ou o diabo está
dando uma
‘pool party’



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray.