quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Névoa



Sou muito sonhador –
Toda noite algo me vêm aos olhos,
quando os fecho para o descanso.
Ontem, por exemplo: um dinossauro
Pousou com a sua calda, como se dotado
de asas, bem sobre os meus pés descalços,
e puxou-me as orelhas tão alto, que eu jurei
ter um troço! Mas o dinossauro era simplesmente
uma tartaruga, com o casco pintado de esmalte,
imitando as unhas de minha tia Laura.
A vida desfeita da névoa, do sonho da noite anterior,
trouxe-me a morte de tia Laura: ela, uma defunta,
a exemplo dos dinossauros. Só que eles morreram
pelo meteoro, enquanto ela descobriu tardiamente
um câncer no ovário. Enquanto persigo a tartaruga
as cores de sua armadura modificam-se perante
meus olhos... já não distingo se os tenho abertos
ou cerrados...



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sensualidade



Pego no escuro
Tua silhueta
Almejo ter a disciplina de um monge
em tardes quentes
nos largos
por entre as
coxas do teu regaço
apalpo as nádegas com a
circunspecção de um pároco
enovelo-me dentro de recônditos
escuros e melados
tateando com o paladar
e enfiando com o viés do tato
tudo o que seja língua, estupor,
sangue, náuseas, dentes
– mole suor e vidro quente –



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Magma


lua borrada de ouro
coberta com açúcar
cristalizado
é aniversário de
Deus
ou o diabo está
dando uma
‘pool party’



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Man Ray. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Altivez



descansar a alma
recuperar o corpo
– para que deem conta –
de um ciclo novo




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Jhê Delacroix.

Agonia



o corpo reclama
a existência pela
dor. Em sua pele
hirsuta raspam o
canivete e até ao
baço o empurram
para dentro o aço
da lâmina - fátua
embolora nervos
se contraem e a
bile expulsa uma
como água sem
cor. Num fulcro
- maca aluminada
expia a sua dor.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Valter Hugo Mãe.