sábado, 2 de setembro de 2017

Catadores


Colhei
do ventre
a cria – da cria
o choro – colhei
o sangue
(colhei da vida)
a morte – da morte
o pranto
– do choro há luz –



Raphael Vidigal

Imagem: Obra de Dora Maar.

Estação


No domínio de setembro
Eu me nego ao desespero
E contemplo o vão momento
Sem a ânsia de aspirar...

No domínio de setembro
Estou só e não lamento
Eu abraço meu tormento
Sem querer-te sufocar...

No domínio de setembro
Dou uma pausa ao pensamento
Acredito em respirar...

Mês de inverno e primavera
Que já passa pelo vento
Como pétala no mar...


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Zinaida Evgenievna Serebriakova.

inverno


algo em mim ficou frio
como o ventre da foca
do pinguim o nariz
e os dentes do leão-marinho

congelado no tempo
o vento soçobra
teu beijo de esquimó
memória de um urso polar

faminto


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Maria Bonomi.

passageira


o meu amigo que já não tem corpo
agora vive em um passado morto
que se me revela em tom camaleônico
se estou triste: o vejo verde-musgo
na alegria vai do rosa ao fúcsia
o meu amigo que já não tem corpo
habita em mim
entre a manhã e a noite


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Marie Triepcke Krøyer Alfvén.

Delinquência


Ai meu Deus...
Sejamos menos obtusos!
Porque não arranhar as paredes
Com nossas garras de esmalte e cigarros?
Pelo gargarejo matinal (e até sardônico)
Cuspamos as saliências protocolares
Para que as coisas obsoletas
Permaneçam em nossa garganta...
Delas estejamos livres,
Para viver apesar de tudo
E não sobreviver com um tartamudeio
surdo...
Ai meu Deus...
Sejamos a cápsula do futuro!
Aquela que, vazia, através de um furo...
Deixa transparecer suas entranhas ao fundo
E nela se veja um espelho que só reflete o nosso miúdo.


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Rosalyn Drexler.  

Beco


Compreender a vida
Não é toca-la, nem é
Cintila. Compreender
A vida não se explica
É ver um pássaro
A sua cria
Virar comida
Ver um macaco
Engoli-la inteira
Viva
Dormir em paz
Com sonos de mentira


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Jacqueline Lamba. 

O Corvo


Um dia eu irei embora deste mundo, e todos os meus preconceitos, lavados na água do pântano, terão sido inúteis como flores pra defunto.



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Gerda Wegener. 

Teia


Uma borboleta está seca
Na parede. Grudada como
A morte em nossos dedos.
Mesmo que o seu corpo esteja
Entregue a outro desejo
E a pele sofra espasmos
Pela fricção do membro
(eu como borboleta te
observo da parede)
Só não me traia
dentro do seu
coração sereno


Raphael Vidigal

Imagem: Obra de Ghada Amer.

Interrogatório


Detesto ter de me explicar: como se a poesia tivesse a luz na sua cara –
E ao lado um balde d’água para eletrocutá-la; e desse movimento se
Extirpasse uma verdade: logo a menstruação é prova das que um dia parem...



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Tracey Emin.  

Penitência


Queria que as flores me cobrissem o tapete
Que fossem como o milho por debaixo dos
Joelhos. E a penitência feita eu recebesse
Feito o filho. De todo o meu suplício eu
Transformasse o choro em luz


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Gertrude Abercrombie. 

Proteína


Arrancar o coração
Arrancar a moela
Arrancar o fígado
Arrancar as coxas
Arrancar o peito
Arrancar as asas
Arrancar até os pés de galinha
No molho pardo cozinhar nossos dias


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Margaret Keane. 

regresso


somos substitutos
de uma gente insubstituível
no coração e nos juncos
nas catedrais e nos túmulos frios


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Gabriele Münter.

Calvície


Não há dia mais triste do que o domingo
com suas varizes, seus olhos de quem perdeu o sábado.
As pernas tremem e não existe bengala capaz de amparar sua saudade.
O domingo está velho, tem dor nas costas e rugas por toda a face.
Sua tristeza é um prenúncio do que o aguarda
quando o dia restaura sua lógica mecânica.


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Natalia Goncharova. 

Fantasmagoria


Estão todos mortos
No cemitério das minhas lembranças
Há uma pilha de ossos
Por sobre as cabeças que me deram tanto
E se desfizeram
Como uma amêndoa nas quais joguei minhas tranças
Por um fio-pêndulo
Tento buscar o horizonte distante


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Joan Mitchell. 

Agulha


Estou aqui para gargalhar
Do hematoma, da hemorroida
E da atadura

Só vivo para dar risada
Do meu infarto, minha hemorragia
E os meus tantos esparadrapos

Sorrio de esguelha, com o canto da boca
Do osso mole, pela garganta podre
– E para a pele que enruga –

Tudo que nasce é dor, e um dia será pintura



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Pauline Boty. 

Praga


Lágrima de cebola
Lágrima de crocodilo
Por um amor que me sugue
Como se fosse vampiro

Dente de alho – perna de pau
Olho de vidro
Chuparei esse amor bem-vindo
Com a ânsia do mosquito

Leite de cabra
Teta de onça
Da matança e do milagre
(sangue, suor e lágrima)
nascerá uma criança

(com dois olhos de banana
e uma boca para ser
Profana)



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Tamara de Lempicka. 

Pausa


Tempo de recolhimento
De se olhar para dentro
Ignorar outros colos
Se assentar sobre o nada
Cruzar os braços na alma

Tempo de recolhimento
De perscrutar o invisível
Andar ao vento em silêncio
Guardar a brisa no peito
Se recolher para fora

Tempo de recolhimento
Estar no vão do momento
De perceber o que aflora
Se aquecer no que passa
Absorver como a morte


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Paula Rego.