quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Para amainar essa dor


Para amainar essa dor
Talvez sal grosso dê conta
Ou então gengibre e cebola
Ou sopa de macarrão

Para amainar essa dor
Não há feijão que dê jeito
Nem todo o ferro do mundo
Ou o tempero do amor

Para amainar essa dor
Eu me embriago na sede
Tão afogado e sem rede
E um grito solto em vão

Para amainar essa dor
Não há feijão que dê jeito
Nem todo o ferro do mundo
Ou o tempero do amor

Para amainar essa dor
Eu te escrevi um bilhete
Que antes do teu conselho
Se extraviou no porão

Onde eu guardo essa dor
Sem chance nem solução


Raphael Vidigal

Imagem: fotografia da atriz francesa Jeanne Moreau. 

Profecia


Numa lânguida mordida de girafa
Eu me jogo aos seus joelhos
– qual cotia –
E enterro a minha cabeça
– fosse ema ou avestruz –
Mas rebolo em sua cintura, pois um dia
Quero ser o bambolê da sua anca
Qual quem morde uma maçã e perde o dente
– pois criança ele ainda era de leite –
Qual quem pica com o ferrão – e perde a bunda – o meu órgão mais vermelho é sua fruta


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Kees Van Dongen.

Noturna


Quais são os
os sonhos
da menina sem medo?

Têm
Ornitorrinco
Ouriço ou
Marreco?

O que sonha
a menina
sem pesadelo?

dedo no espinho?
fio na roca?
cabelo no nervo?

há cor de bromélia no sonho da menina sem pesadelo?
há cheiro de sangue no sonho da menina sem pesadelo?
tem textura de varizes o sonho da menina sem pesadelo?

Nada corrige a dor infiltrada via seringa
feito pensamento escalpela-se o crânio
Permanece a ideia viva na cabeça do
Esqueleto

me olha a menina
com seu olho de vidro
vítreo vidrado vinho

e eu em seu ninho – me dissolvo como num pesadelo



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Evelyn De Morgan. 

obscena


irreversível é a vida
causa de toda proeza
e miséria. a morte
é apenas sua consequência
não mais que um momento
passageiro. eterna é
a vida. e IRREPETÍVEL


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Mira Schendel.  

Labuta


Minha vida está aí para ser contada
De trás para frente
Sem pé nem cabeça
Um tanto coalhada, bebê de proveta
Minha vida está aí
Para quem só acredita
vi - vendo



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Jacqueline Lamba.

arame


pelo escopo do seu corpo
eu vejo a minha bengala
sem o escopo da sua alma
permaneço só, e imóvel


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Louise Bourgeois.

Selvagem


O leão escreve seu poema
Com o banho de sangue do búfalo
A gralha escreve seu poema
Pelos olhos atentos na cria
A tartaruga escreve seu poema
Lenta, quase interminável
O casal de porcos escreve seu poema
Na cópula que dura dias
A mesma pessoa escreve seu poema
Feito de sangue, fuligem, cansaço e vida


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Dora Carrington. 

Parto


Seu cheiro de mingau
Escorrendo pelas paredes
E eu, que já não sou bebê,
Choro pela luz que chega.

Liberto, então, da placenta
Olho para o meu umbigo,
Sem o cordão que me ligava a ti.
E eu que já não sou bebê

Parto como quem fareja
Seu cheiro de mingau de leite
Que escorre pelas paredes...

Pois para completar o soneto
Minha boca cala com a chupeta
Pelo plástico dessa teta fria.



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Berthe Morisot. 

Infelizmente


Hoje, apenas uma mão
sobre o peito: engancha o mamilo – como se feito de espelhos:


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Tarsila do Amaral.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Dentro


Espírito da noite no meu corpo
Como o coiote no coração da
Menina. A vespa por sobre a
Larva indefesa. Como uma
Berne canina. A metástase
De uma doença. O rato na
Boca da coruja. Espírito da
Noite me penetra. E aniquila



Raphael Vidigal

Escultura: Obra de Leda Catunda. 

Luto


Que posso eu agora nessa vida
Senão dizer que a sua morte
Não impede a pantera de devassar a escuridão
com o seu brilho assassino
contra os próprios filhos
Nem o leão
de promover inadvertidamente o mesmo massacre
Todos os dias
Que posso eu agora senão dizer que a sua morte
molha meus interstícios
E na colheita do luto
Suplanta-se a vida
Com uma única, porém resistente
guimba
onde me apago em tuas cinzas


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Lygia Clark. 

Marionete


Uma marionete desmontada
ao rés do chão
já não sorri
tampouco arqueja as sobrancelhas
expressa apenas o sono das mãos
ante as pernas sem movimento
enquanto o choro aquece sua garganta vazia



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Anita Malfatti. 

Promessa


seremos livres apesar de tudo
apesar do trabalho
apesar do choro
e do esforço
seremos livres apesar das prisões
da família, da pátria e da religião
seremos livres por um instante
naquele segundo do orgasmo
senão nessa vida toda – na hora da nossa morte


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Artemisia Gentileschi. 

Marcas


De bom alvitre
O abutre
Anuncia
A morte
As carnes podres
Formam a modorra no chão
Que em teu banquete
Espalha com bico e unhas
Como lâminas
Lascas e pedaços inteiros
De couro e sangue coagulado – para enxergar no reflexo a própria imagem


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Frida Kahlo.

Entranhada


Há uma dor
em mim tão
hospedada
que não se
livra
nem por
espirro
ou trepada
não se expurga
nem se extrai
qual uma cárie
a dor é ácida
lá no estômago
dentro da boca
nos meus ouvidos
entre a carne
pelos e músculos
invade os ossos
está nas juntas
terminações
mas nunca acaba
pois como a morte
a dor retrai
antes que escape
sem ser chamada
e acreditamos
estar curados
ao melhorar
e respirar
os novos
ares
enquanto
a dor
arma a tocaia
dentro de nós
ei-la hospedada



Raphael Vidigal

Escultura: Obra de Camille Claudel. 

Declaração


O domingo está pedindo algum veneno
Pra que o dia não se extinga antes dele
Sua língua está áspera igual a um pelo
E as varizes de suas pernas enovelam
Assim, crespo; assim famélico; martela
Bate a própria cabeça contra a parede
Como o branco de sua pele exacerba
O que nele falta e é tudo transparência
Já os braços se separam até dos dedos
Toda a nuca está distante do pescoço
A cabeça não tem olhos e nem orelhas
Suas unhas engoliram o próprio sexo
Do domingo que só clama por veneno
Ante o dia que se insurge contra ele
Logo a noite anuncia a contrapelo
Os seus ossos estão à mostra e as
Verdes veias. Se enxerga até de perto
O fígado inteiro. De um domingo que está morto – sem veneno



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Tomie Ohtake. 

riacho


nada poderá conter a queda
ou o imã que segura a outra
parte

a primeira morte me foi delicada
escorreu a lágrima sem saber de
nada

nada poderá conter o imã
ou a queda que segura a
outra
parte

a segunda morte me foi na cintura
debruçado ao chão
bebi do riacho

nada poderá a outra parte
conter o que segura
o imã
queda

a terceira morte me foi
nada
na cintura a lágrima
delicada
escorreu ao chão
pela mão do
riacho


Raphael Vidigal

Escultura: Obra de Vally Nomidou. 

Preenchimento


o vermelho do teu lábio leporino
suga minha glândula enferma
a gengiva está aberta para seios
como leite que invade minha vagina


Raphael Vidigal

Escultura: Obra de Serafim Gonzalez.