terça-feira, 31 de julho de 2018

Xeque-mate



À eloquência da ignorância, todo silêncio é filosófico.





Raphael Vidigal

Escultura: obra de Brancusi.

Mire-se



o meu choro não é de samba
o meu choro não é de amor
o meu choro nem é tristeza,
desespero, fúria ou ardor,
o meu choro vem da membrana
– não tem alma –
é só carne, osso, íris, pupila e globo



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Diego Rivera.

Deserto



O que há de intocável em seu sorriso?
Preso na moldura de aquário...
Talvez o tempo aja em silêncio...
E amarre feito alga os nossos sonhos...

O que há de intocável em seu sorriso?
Cada passo me desperta para teus ombros.
Parecem desprezar o que num dia...
Foste a água do deserto pra o meu corpo...

E agora, o que há de intocável neste poema?
Por certo a cor dos olhos, a voz serena.
O arfar inevitável dos teus seios,
Quando eu te encontrei em meio ao pranto...

                                   pois tudo o que me resta é a tua lembrança...

E nada me devolve pro teu colo,
e nada restitui os primeiros anos,
e nada será nunca como dantes,
o mar que navegamos no oceano...

agora encontra o lago menos brando,
agora sente o sal na dor dos lábios,
agora está sem o tal primeiro encanto...
agora hoje e sempre a flor é manto: por onde se estendeu uma dor na entranha

            Te vejo ao subir daquela tarde...
E desço o elevador num sol tão áspero...
            Cadê o carrossel da minha infância?
Que fomos só crianças e então adultos,
Soubemos desfazer nossos cadarços?

            Eu pulo feito doido em teu pescoço!
            Você me aceita própria para a dança,
            E assim desenrolamos um no outro
            E já não vejo a vastidão do mundo...

O teu vestido é o meu único consolo,
Em teu rochedo eu anuncio a fúria
de todos os povos: sou ermitão e um pouco de filósofo,
procuro compreender tuas funduras,
e quanto mais me perco em ti me encontro...

            Mas eis que a água tem um ciclo próprio...
            Não viste nem avisaste sobre as ondas,
            Impetuosas nos destinam a morte...
            Aqui em teu aquário vejo os olhos,
            Inspiro e te sinto em outro mundo: morro dentro de ti pois sou teu fungo.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Modigliani.

predestinado


sonhei que voltava
ao colégio da minha infância
           
mas com a idade de hoje
todos com 12 e eu com meus 29 anos

vestíamos uniforme
e corríamos atrás da bola

onde foi parar
a minha primeira namorada?

ter um corpo é padecer
nós, como filhos, permanecemos

a memória zomba
dos meus sentimentos


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Henri Matisse. 

Drible



um feto        morre         do fato

                               fito a foto

                                              
                                               fulo



Raphael Vidigal

Escultura: obra de Amilcar de Castro.

Anatomia



com uma sutura no coração
e a gengiva em processo de necrose
a vida
procura na morte um descanso
pela promessa da sua cura.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Francis Bacon.

Cupido tem dessas coisas (receita para cocada doce)



Num pedaço do céu de abril...
Uma dama de leite sorriu!
Mas, feito floco de neve,
Logo ela sumiu...
E a boca, cheia de mel,
Assim (languidamente) também derreteu...
Balancei um coqueiro e o que me caiu
– Foram os seus olhos ternos de outono:
“Te amo
como num reencontro”.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Margaret Keane.

Memória da dor



O sabonete desmancha na mão
quando em contato com o corpo.
De repente o grito de dissipou e
a tensão dos membros é só uma
lembrança.
O que havia de interminável ali,
naquele momento, que agora é
tão somente coração desfalecido?



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Frida Kahlo.