segunda-feira, 20 de maio de 2019

Gramofone



O trocadilho sentiu
Lentamente um frio na espinha.
Se aproximava o duplo-
Sentido, com suas
Calças curtas dobradas
Até os joelhos.
O ignorou solenemente,
Auferindo a superioridade
De uma linguagem concreta.
A metáfora, coitada, não tinha
A menor chance diante deles.
Faltava-lhe corpo, massa, peso.
Era apenas uma ideia travestida
De gente. Sobrevoava as cabeças
E por vezes metia-se dentro delas
Enroscado um a um os parafusos do
Cérebro. Mas jamais seria capaz de
Uma grosseria que comprovasse a
Sua existência. Do tipo: assobiar e
Chupar manga ao mesmo tempo.
Ou enfiar uma paronomásia no meio dos dentes.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Salvador Dalí.

Poema da ofensa



Canhestro, tacanho, mesquinho.
Comezinho, vulgar, vil.
Hipócrita, falso, medíocre.
Venal, sádico, cruel.
Virulento, fônico, inseto.
Você não passa de um poema
eterno.



Raphael Vidigal

Desenho: obra de Picasso.

Amando



um ano passa tão rápido, como se
o tempo abrigasse uma porta oca...
antes mesmo que o coco se amadureça
já estamos com água na boca...

o litígio de um ano pode ser o fiapo
que se soltou do rabo duma estrela
cadente, mas o acontecimento do
reencontro é fogo dentro da caldeira

vulcânica, que ao menor estalar
desperta corpos ágeis como os de
dois esquilos lépidos e lânguidos...

quando as almas se enrolam ao
redor dos âmbitos é porque os
corpos se conhecem de mil anos!




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Tarsila do Amaral.

aleluia



Não quero me despedir dessa vida
Ainda sem ter provado a nostalgia,
Sem ter ao menos perdido a inocência,
O olhar doce e perdido de quem olha

para um pé de manga. Não posso
aceitar a mão que acena, retribuir
o gesto de quem já perdeu a vontade
de ficar com o olhar doce e perdido

na estação. Desejo uma única
estrela, sem promessas ou pedidos,
apenas viva. Livre de correntes

e algemas. Assim vou me despedir
dos que esperam pelo final. Com o
começo de um novo dia rajado de sol.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Djanira da Motta e Silva.

Nostalgia



um
paraíso
que
de
tão
perdido
não
tem
nada



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Fragonard.

Perfil



sou a soma
    de todas
as minhas perdas,
     ausências
            e
 buracos.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Modigliani.

Períneo



Ninguém sobrevive à vida.
As perdas se acumulavam.
Do nascimento até a morte
Um estreito caminho para
As aleluias e os orgasmos.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Artemisia Gentileschi.