O
tempo de conciliações acabou.
Eu
me lembro de ser muito pequeno
e
ainda não ter olhos de realidade.
Diante
de uma cesta de frutas,
as
cores tinham mais interesse do
que
os sabores, e ambos se lambuzavam.
Amarelo
tinha gosto de sol coalhando no mar.
O
vermelho pinicava igual a superfície das
roupas
no varal. E o roxo das uvas imitava
as
bochechas das meninas com timidez,
escondendo
os seios por debaixo de camisetas
largas.
Porém o tempo de conciliações acabou.
Hoje
se me precipito sobre uma pedra sei
de
sua dureza e da incompatibilidade entre ela
e
os seres humanos. Reconheço, de longe, qualquer
tentativa
de uma criança alcançar o céu com
suas
mãos cheias de sonhos e fico me perguntando
quando,
afinal, chega o dia em que reconhecemos o
vazio
da morte. Porque o tempo de conciliações
acabou.
Prostro-me na frente de um pote e
observo
todas as suas condições. Ele é cilíndrico,
com
leves angulações, possui uma base larga e
estreita
é a sua boca. O rótulo gasto denuncia
o
seu tempo de vida, assim como os vincos no
rosto
de um velho afirmam o estado decrépito de
seu
corpo. Começo a pensar naquelas garrafas
de
vinho e do sumo que se solidifica no fundo delas,
e
então percebo que a memória, como esse sumo,
só
se petrifica quando o objeto de desejo esvanece.
E
que o momento do prazer é efêmero, quando
escorre
o vinho nos túneis da garganta, mas,
depois
disso, aprimora-se uma dor latente de ressaca.
Dentro
do pote não existe nada.
Eu
vejo o meu rosto dentro dele,
feito
num espelho arcaico.
Apesar
de não ser exatamente velho,
é
um rosto antigo, cansado, com uma
expressão
desesperançada que se
percebe
nesses olhos baços.
Eu
olho para algum lugar que já não
me
recordo, mas nele existe uma menina
que
me acena de longe. Eu não encontro
sua
expressão, não consigo distinguir se
ela
me acena em sinal de despedida ou porque,
ao
contrário, comemora a minha chegada.
Ela
permanece acenando, acenando, acenando, por uma eternidade...
com
uma mão tão branca, tão branca, tão distante
que
parece ser feita de gesso por algum escultor.
O
tempo de conciliações terminou.
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Pablo Picasso.
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