terça-feira, 24 de setembro de 2019

Gesso



O tempo de conciliações acabou.
Eu me lembro de ser muito pequeno
e ainda não ter olhos de realidade.
Diante de uma cesta de frutas,
as cores tinham mais interesse do
que os sabores, e ambos se lambuzavam.
Amarelo tinha gosto de sol coalhando no mar.
O vermelho pinicava igual a superfície das
roupas no varal. E o roxo das uvas imitava
as bochechas das meninas com timidez,
escondendo os seios por debaixo de camisetas
largas. Porém o tempo de conciliações acabou.
Hoje se me precipito sobre uma pedra sei
de sua dureza e da incompatibilidade entre ela
e os seres humanos. Reconheço, de longe, qualquer
tentativa de uma criança alcançar o céu com
suas mãos cheias de sonhos e fico me perguntando
quando, afinal, chega o dia em que reconhecemos o
vazio da morte. Porque o tempo de conciliações
acabou. Prostro-me na frente de um pote e
observo todas as suas condições. Ele é cilíndrico,
com leves angulações, possui uma base larga e
estreita é a sua boca. O rótulo gasto denuncia
o seu tempo de vida, assim como os vincos no
rosto de um velho afirmam o estado decrépito de
seu corpo. Começo a pensar naquelas garrafas
de vinho e do sumo que se solidifica no fundo delas,
e então percebo que a memória, como esse sumo,
só se petrifica quando o objeto de desejo esvanece.
E que o momento do prazer é efêmero, quando
escorre o vinho nos túneis da garganta, mas,
depois disso, aprimora-se uma dor latente de ressaca.
Dentro do pote não existe nada.
Eu vejo o meu rosto dentro dele,
feito num espelho arcaico.
Apesar de não ser exatamente velho,
é um rosto antigo, cansado, com uma
expressão desesperançada que se
percebe nesses olhos baços.
Eu olho para algum lugar que já não
me recordo, mas nele existe uma menina
que me acena de longe. Eu não encontro
sua expressão, não consigo distinguir se
ela me acena em sinal de despedida ou porque,
ao contrário, comemora a minha chegada.
Ela permanece acenando, acenando, acenando, por uma eternidade...
com uma mão tão branca, tão branca, tão distante
que parece ser feita de gesso por algum escultor.
O tempo de conciliações terminou.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Pablo Picasso.

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