segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Romance



Na bacia das almas
disseram adeus.
Cada um para
um lado. E uma folha erma,
no chão de outono,
representava a penúria
daquele casal.
Idas e vindas.
Encontros e despedidas.
Até que um dia o milagre aconteceu.
O rompimento manteve não intacto,
mas conservado aquele amor.
Naquele dia recolheu um passarinho morto,
afogado na piscina, circundado pelas
folhas ermas das águas de outono.
As perninhas estavam rijas e esticadas.
O corpinho molhado de penas jazia mole.
O final tinha, enfim, se consumado.
Na solidão amou aquele passarinho defunto
Cheio da esperança que traz ao mundo uma criança
recém-nascida. Pouco antes de partir, emitiu um
último assovio de bicho
que continuou no ar,
em eco...
ressoando...
e, com duas piruetas
e uma cambalhota,
não parava de demonstrar:
Só o que acaba permanece.
Só o que acaba, permanece.
Só o que acaba...


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Renoir.

Finados



Como é frágil
o instrumento humano.
De sódio, potássio e fibras.
O tempo despedaça o corpo,
ao esgarçar suas cordas à máxima
tensão. E a bruma que fica é sua alma.
Ressoando em infinito som.



Raphael Vidigal

Escultura: obra de Aleijadinho.

Favas (Advogar)



faz-se pressuroso
desopilar a poesia
do custo fiduciário!
Quem come o mel
pela casca? Avelã.





Raphael Vidigal

Pintura: obra de Paul Klee.

Vestígios



A vida que some...
Duas jarras de leite
sobre o engastado
jornal... o vento sibila
e já vazias elas tremem
feito um rouxinol... pinga
como sêmen a última gota
do leite pastoso que o tempo
coalhou... a vida que some,
emerge um par de ossos, e
surge um esqueleto, o rosto
pequenino foi de uma criança
levada pela lama há tempos
atrás. Pele, olhos e perninhas
foram devastadas. Talvez só
a alma tenha subido em paz.
Vazio. Vazio o tempo. Vazia a
lembrança. E a memória vã.
Um deserto do tempo.
Escasso. Morto.
Quando tudo desaparecer
ainda restará a palavra socorro.




Raphael Vidigal

Imagem: obra de Ai Weiwei.

Desaforo



já que me escapas
esse amor de swann
que me macera o destino
como se a alma fosse
de fato um princípio ativo...
eu imploro por toda clemência:
– deixem vivos ao menos
os personagens
dos livros!



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Van Gogh.