quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Ranço



Já que me escapas o verniz
E não adianta lutar contra o
Refluxo da vida. Se debater
Nessas águas maceradas é
Como ensinar francês a um
Cabrito. Ou tenho e desdito.




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Paula Rego.

brinde



o céu está azul-cobalto
(lavado pela chuva)
esmaecido como a temperatura
da minha alma




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Berthe Morisot.

Indigesta



Ninguém quer viver
com a morte.
Moléstia, doença e
desesperança
fogem dela como
o diabo da cruz.
Mas quando se
pertence a um
monte de ossos,
como é da abelha
o próprio ferrão, não
adianta correr
sem o rabo...
(só as lagartixas
têm essa sorte!).
Ninguém quer viver
com a morte que,
indigesta, procura um alimento para sua solidão.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Abigail de Andrade.

Virtude



A infância é uma morada grandiosa.
Você não vai encontrar nenhuma outra
que se assemelhe com os bilros, guizos e
plumas desse tempo sem paredes nem relógios.
Em cada cômodo: uma surpresa. Diante de cada
escada: um novo destino a ser inventado. Assim é
a infância. Uma morada grandiosa. Você não vai
encontrar nada parecido em nenhum castelo desse
mundo. Apenas, depois de ultrapassada, o que resta
são espaços amplos, com tintas mofadas, um cheiro
amarelo, cadeiras vazias e, sentada de costas para
você, uma senhora chamada saudade. Velha e gorda.
Catatônica, ela te convida a acompanhá-la pela eternidade.




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Rosina Becker do Valle.

Destemida



Sabe aquele dia que
você pulou lá do alto
e aquelas tardes que
correu no galope do
cavalo. Igual a noite
que enfrentou o mar
revoltado. E saiu com
o mesmo sorriso com
que tinha entrado, e
eu só pensava na
palavra: coragem.
Parece que ela
se pregou na tua
alma feito tatuagem!



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Manet.

fadas



toda vez que
te dou a mão
toda vez que
ando com os
meus pés e a
cada vez que
olho para você: vejo o invisível
preenchido por
pequenas asas
e espertas patas,
e é sempre uma
única e primeira
vez.




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Paul Klee.

colo



antes de saber
o que era colo,
o que dizem
os dicionários,
a definição de
pediatras e o
sentido dessas
quatro letras
tão pequenas,
eu estive nesse
lugar que entendo
só de olhar para os
teus olhos verdes.




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Monet.

Frutífera



Dois olhos de amêndoas,
duas bochechas de morango,
cada orelha uma framboesa e
um choro de bebê,
– talvez criança –
escorre feito a polpa
no pêssego maduro.
As pernas e as mãos
se juntam como dois
cachos de uvas.
A tua pele que me
queima e nutre
transforma a água em
vinho. E o beijo se derrete
feito um manjar de coco...
eterno na lembrança
presente enquanto
sinto a tua alma
no meu corpo




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Matisse.

Passado



As coisas vão se apagando
da nossa memória.
Granuladamente.
Que se tornam coisas,
sem nome, impessoais.
E transparentes.
Um dia, então, retorna
com espanto
o olhar que se perdera
entre as paredes.
Granuladamente
caem sonhos de papel
na nossa frente...
Um dia prometemos
um para o outro
ser a eternidade nossa
e sempre...
ignorando o tempo
com a coragem
que há no peito
dos adolescentes...
e nada deteria
esse clamor
espada, canivete
ou tungstênio...
a chuva na janela
desenhava, com
pingos o que em
nós se rebulia
(fora e dentro)
mas antes ou depois e ainda agora...
eu vejo essa janela à minha frente...
porém o vidro foi
tornado fosco,
e os olhos granulados.
Transparentes.




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Goya.

Papila



circula o contorno
do seio, o bico aponta
para a língua sem firula
entrega-se inteiro
cheio, como pêssego
que escorre a sua polpa
baba a carne rósea
– premente do orgasmo –
e então descansa
teu cheiro de mulher
em minha boca



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Artemisia Gentileschi.