sábado, 27 de abril de 2024

têmpora temporã

 



pé de galinha

 

espírito de porco

 

em duas linhas

 

um poema anônimo

 

língua de sogra

           

                        teta de vaca

                        assim escapa

 

            no vão da anágua

 

                                               uma mancha, uma palavra

 

                        ou só o pó da senzala

escrava, filha da gramática

 

                                    ou mãe de toda expressão

                                               que cava, caça, procura

 

            uma ninharia

 

                                                                       feita de espasmos

 

pé de galinha, linguagem escrava

           

            a centelha acesa

            no vão da anágua

 

                                                           toda palavra almeja

 

                                                                                                          ao que escapa

 

            mancha

            procura

            espasma

 

 

                                    (No umbigo) do mundo

                                    Uma mão que datilografa

 

os papiros árabes

 

                                                           de redes

artificialmente                                                                                  conectadas

 


Raphael Vidigal Aroeira 

 

Dedicatória pretensiosa ou pretensa dedicação

 


não sou nenhum bandeira

mas às vezes chego à beira

ora, estou bem longe de andrades

e até já causei certo alarde

que me perdoem os drummondianos

e todos os cantos gregorianos

(barrocos e contemporâneos)

pela audácia – doce disparate –

desses literais enganos...


Raphael Vidigal Aroeira 

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

espelhamento

 


na vida do vô chico

o tio dudu nunca morreu

transporto-me para esse tempo mítico

em que não sou pai e ainda sou filho

encaro meu tio e os olhos de menino

veem no espelho

o fim e o infinito


Raphael Vidigal Aroeira

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Oração para tia Mac

 


A taça de sorvete quase aristocrática me lembra você.

A brasa acesa no cigarro branco. O telefone pendente do gancho.

A taça é de vidro. O cigarro, feito de papel. E o telefone, talvez, de plástico.

Você foi embora num instante, ao contrário das longas epopeias que contava.

A última vez que te vi, você tinha os cabelos presos num coque, as mãos já tão frágeis, compridas e magras. E me contou a aventura que teve num dia em que saiu de carro pela cidade, mas o que me recordo é de seu tom de voz rouco.

Antes, quando visitamos sua irmã, minha tia Inês, você disse, em instinto premonitório “queria te ver antes de morrer”, ainda sem saber da doença.

Na hora da foto, você se recusou a aparecer, como de costume.

A agitação de seus gestos, o coração quase sempre pulando da boca, inflamado pelas paixões políticas e do esporte, parecia não aceitar a imobilidade que, ao eternizar, congela os instantes.

Você permaneceu de lado, olhando para nós, fumando seu cigarro, e eu retive na lembrança essa imagem sem precisar da imagem.

Neste dia, você estava fascinada pela vida, pralém da amargura e das mágoas.

Porém, o que ficou de ti pra mim foram as histórias que meu pai me contava.

A Marisa da infância que eu não conheci.

A criança eternamente guardada no corpo da senhora com seu cigarro.

Minha tia Mac que escrevia contos eróticos sob o véu de um pseudônimo.


Raphael Vidigal Aroeira

09/10/2023 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Oração para o tio Dudu

 


Como se mede uma vida?

Pelo número de dias?

Ou pela quantidade de votos?

E se esses votos forem votos de amor?

E se esses dias forem traduzidos

em sorrisos cheios de ternura e gestos de doação?

A vida é uma estrela vermelha

que pulsa como um coração infinito.

Porque cada momento é eterno

e só o instante existe.

Viver não é numérico, é um ato político.

A matemática da vida é um cálculo sensível.

Onde o amor ultrapassa qualquer limite.

O amor ao próximo. A sede de justiça.

A luta feita na delicadeza

aberta como uma flor ao meio-dia.

Canta o vento. Gorjeiam os passarinhos.

Amigos de São Francisco.

Ensinar com afeto revoluciona o mundo.

É a educação de Paulo Freire: sem medo de ser feliz.

Muito obrigado, tio Dudu, camarada, companheiro, professor, mestre, irmão, pai, filho, marido, numa única palavra, perene demais para o tempo, acima das equações e dos teoremas: amor, de tantas e todas as maneiras.

Tudo isso aprendemos contigo.

Ao mestre, com carinho.

Pois se a lição sabemos de cor,

Só nos resta aprender.


Raphael Vidigal

16/09/2022