domingo, 4 de junho de 2017

Crepúsculo


Não existirá
o braço sobre a pia rota
Não existirá essa mão que segura a escova.
Os dedos que a amparam nas pontas
não existirá
esse peito que deita sob a colcha
esse hálito que pela manhã escapa da boca
o sentido primário e o sentido último
Não existirá a pele o pão o asfalto.
Por isso dorme com tranquilidade.
E come quando tem vontade.
Que do sono e da fome do mundo um dia serás capacho




Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Monet. 

Perspectiva


Só podemos esperar
que seja de novo amanhã.
E o frio recolha a lavoura,
e a febre se torne terçã.
Apenas podemos esperar
um sol de manhã
o frio à tarde,
sobre as vasilhas
trigo e maçã.
Só podemos imaginar.
Que seja de novo amanhã.
E a vida recolha suas mortes.
Da varanda se aviste uma fruta:
não muito verde, tampouco madura – que tenha uma cor de manhã


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Edward Hopper. 

Cabra


Na vida eu tenho duas bandeiras:
A preguiça e a liberdade – com uma
Eu seguro a primeira
             com a segunda eu enrolo
                                   o mastro
            duas bandejas assim
                        eu trago:
Sobre a preguiça a Liberdade
            se dou bandeira é de preguiça
            se dou de bandeja é por liberdade



Raphael Vidigal

Desenho: Obra de Belmonte. 

Estilingue


Não há de contestar a própria ferida
Nem esperar de um dia as cicatrizes
Mantendo-a assim aberta como vida
Que a morte venha a ser o estilingue
Do mocho e do urânio e da estamina
Retornas ao choro e à luz da cirurgia
Por entre sangue os gritos da barriga
E não hei de contestar a própria ferida


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Edvard Munch. 

pomo


e fica o dito
pelo não dito
fica o ferrão
da abelha
como da brasa
a centelha
fica do som
a orelha
fica o findo
e queima
queima



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de De Chirico.

bússola


lhe desejo
bons augúrios
& presságios
maus presságios
bons augúrios
como há nuvens
sobremar



Raphael Vidigal


Pintura: Obra de Salvador Dalí.



Fio


A vida tem muitos capítulos
Prelúdio, interlúdio, epílogo...
Quem dera se a gente pudesse,
Fechar a vida como a uma novela.
Porém não se aprende com a vida
Já que não a escrevemos na tela
Nem mesmo de cor e salteado
– Ou combinações matemáticas –
É possível decorar a vida,
Afinal de contas ela não é didática.
A vida que muda e se enrola
A vida que enrosca na roda
Não sabemos para onde vai a vida
Muito menos da onde irrompeu com tal força.
Uma coisa, por acaso, é sabida
A vida traz muitos destinos
– Há folhas soltas no livro –
Desconhecemos se é folhetim ou prosa
Pois sua tragédia vez ou outra é cômica
E o fio que a puxa ri e chora e goza.
De repente a vida é outra estória


Raphael Vidigal

Escultura: Obra de Brancusi. 

Simpósio


Existe uma preguiça geral sobre nossas cabeças.
Por cima de macacos que recolhem piolhos lá
Está ela – a preguiça geral sobre nossas cabeças –
Discute-se o futuro do Universo, a cereja do bolo
E o preço da gasolina – existe uma preguiça geral
Sobre nossas cabeças – e um piolho escapa da
Mão lesa. À frente da mesa está Vossa Excelência,
Ao lado os conselheiros. Por baixo estamos nós
mesmos. Existe uma cabeça geral sobre nossas
Cabeças. Piolhos recolhem macacos por cima do.
Uma mão lesa escapa ao Universo. Desfalca pela
Circunstância o bolo da cereja. O macaco engole Vossa
Excelência. Por baixo estamos nós piolhos de nós mesmos.
Retesam os Conselheiros. Existe uma preguiça geral que caem das


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Jackson Pollock. 

O tempo no espaço


O quarto dele está vazio.
E não voltará a ser preenchido.
Pende a roupa sobre o cabide.
Sustenta o algodão ainda limpo.
No chão não existe mistério, permanece
o azulejo incólume e frio.
Ainda que bolinhas de poeira voem até
as paredes, que elas toquem o armário aberto
nada indica que pela porta aberta ele entrará
no quarto vazio.
Pende a roupa sobre o cabide.
Sustenta o algodão ainda limpo.
O chão sem mistério é incólume e frio.
Bolinhas de poeira voam até as paredes a partir do azulejo
Incólume e frio e alcançam o armário aberto
aonde pende uma roupa sobre o cabide.
A porta vazia nada recebe, ninguém a encosta nem fecha.
O quarto dele está vazio.
E não voltará a ser preenchido.
Embora haja nele um tempo infinito.


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Edward Hopper. 

Obstáculos


Essa coisa rala
que é o nosso cotidiano.
Mas nele se inscreve
a nossa eternidade
Que quando a gente vê
está guardada numa
Caixa de Pandora.


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Artemisia Gentileschi.