sábado, 31 de janeiro de 2015

A poesia fugiu de mim


A poesia fugiu de mim.
Nos últimos dias tenho me dedicado a tarefas domésticas, como cozinhar, lavar a roupa e a louça.
As pessoas têm feito comentários sobre o meu emagrecimento.
O perfil esquálido e o corpo sem nenhum preenchimento bem poderia me colocar num quadro de Modigliani, que Manoel de Barros comparou às garças.
A maioria dos alimentos que compro já vêm congelados.
Basta esquentá-los no microondas.
A sujeira de alimentos, os restos, e sobretudo o cheiro de comida velha é o que mais atrai mosquitos, baratas e mesmo ratos, em metrópoles que os especialistas julgam como moráveis.
Olho para um cachorro inútil na rua e não sinto por ele nenhuma compaixão.
O tempo se encarregará de levar-nos todos para a mesma cova.
Saio para respirar um ar poluído.
Um miserável me pede um troco e a única resposta é o meu silêncio.
Amanhã vou acordar a qualquer hora da tarde, comer um pão com manteiga e um copo de leite.


Raphael Vidigal

Imagem: cerâmica de Mestre Vitalino.  

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