sábado, 31 de janeiro de 2015

Pequeno conjunto de absurdos ou a história de Kafka por uma barata



Saiu para dentro.
Comeu mosca e palitou os dentes
                                                           Do universo.

Deu voltas ao redor de si mesma.

Enfastiou-se e foi até a esperança que fora a última a morrer.

                        Deu um tiro no próprio pé, que saiu pela culatra.

            Antecipou-se ao passado e revelou tudo o que já havia vivido.

                        Morreu de véspera. De grão em grão encheu o papo.


Mesmo não sendo galinha. Assobiou e chupou manga ao mesmo tempo.

Raphael Vidigal

Imagem: desenho de Ziraldo. 

Da moral e dos bons costumes

  

  
Juntei as cores de Picasso
            As formas de Dalí
A expressividade de Matisse,
                Rembrandt
                El Greco.
    O olho de Egon Schiele,
                 Klimt,
                 Henfil.
    Ao final fiquei só com a ética
            Desses artistas.

Pois não me coube a estética inteira.

Raphael Vidigal

Imagem: recortes de Matisse. 

A poesia fugiu de mim


A poesia fugiu de mim.
Nos últimos dias tenho me dedicado a tarefas domésticas, como cozinhar, lavar a roupa e a louça.
As pessoas têm feito comentários sobre o meu emagrecimento.
O perfil esquálido e o corpo sem nenhum preenchimento bem poderia me colocar num quadro de Modigliani, que Manoel de Barros comparou às garças.
A maioria dos alimentos que compro já vêm congelados.
Basta esquentá-los no microondas.
A sujeira de alimentos, os restos, e sobretudo o cheiro de comida velha é o que mais atrai mosquitos, baratas e mesmo ratos, em metrópoles que os especialistas julgam como moráveis.
Olho para um cachorro inútil na rua e não sinto por ele nenhuma compaixão.
O tempo se encarregará de levar-nos todos para a mesma cova.
Saio para respirar um ar poluído.
Um miserável me pede um troco e a única resposta é o meu silêncio.
Amanhã vou acordar a qualquer hora da tarde, comer um pão com manteiga e um copo de leite.


Raphael Vidigal

Imagem: cerâmica de Mestre Vitalino.  

Apócrifo


Entre o jargão e o palavrão
Há uma série de maus entendidos.
O palavrório serve aos incautos,
O suspensório para os doutorandos.

Mas o riso besta
não se distingue.

Por isto entre o jargão e o palavrão
Põem-se dois pontos: a favor do risco!
A partir de agora “periclitante” e “pau de sebo”,
terão o mesmo sentido.

     Mesmo com a norma não se finaliza
A velha rixa, antiga ninharia,
Entre a palavra e o que significa.

Um se diz falacioso
O outro é uma mentira.
Um usa a retórica,
O outro uma espiga!

Quando o Juiz dos Gramaticais

Exige a todos que se levantem

            PARA A SOLENE DEFINIÇÃO

Não há uma bunda presa à cadeira,

Sequer um glúteo ou um traseiro.

Expiram unânimes (ou seriam todos?)
o mesmo cheiro.
           
   Data Vênia para este momento:

                                        VÃO AS PALAVRAS
                                               MIJAR NO

                                                VENTO!

Raphael Vidigal

Imagem: arquitetura de Gaudí. 

o asno não merece a alcunha da asneira


        mudando de pato pra ganso
        trocar gato por lebre é como
                preferir o poeta ao
 poema.

Raphael Vidigal

Imagem: escultura de Rodin. 

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Pijama


Vesti um samba canção
A fim de escrever um soneto.
Não deu certo fui de lingerie
Para compor uma balada sangrenta.
Já de lycra combinei um listrado
Mas foi grande o meu constrangimento.
O pijama dos poetas
é uma cueca e um sutiã de renda.

Raphael Vidigal

Imagem: Caligrafia de Denise Lach.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Precariedade


Precário.
Um homem precário.
Uma folha de mármore.
E uma coruja.

Um cacto.
Um cacto de gente.
Um cacho de uva.
E uma alcachofra.

Sufrágio.
Uma palavra de lente.
E deus no fundo.
No fundo deus da escória.


Precário.


Raphael Vidigal

Charge: obra de Henfil.  

Coisas impossíveis de se praticar


Pegar no sono.
Espetar nuvem.
Dependurar cor no cabide.
Tropeçar na perna curta da mentira.
Enxergar as sete cabeças do bicho.
Tomar chá de cadeira.
Colocar o Rei na barriga.
Ser unha de fome.
Esgarçar a própria língua.

Só para as crianças e Manoel de Barros.
E alguns matreiros anônimos.

Raphael Vidigal

Desenho: obra de Millôr.  

Receita para pegar no sono


Fique quieto.
Encontre uma posição de conforto.
Não pense.
Mantenha os olhos, de preferência, fechados.
Quando o bichano der na mureta puxe o danado pela sandália!


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Miró. 

Tempo


Escrevo hoje um português arcaico.
Sem arabesco.
Mas um mosaico.
Um português de ultimato, de fim de tarde.
Um português de Fernando.
E de Ricardo.
Um português que é de Campos. E de caiado.
Um português mal passado.
E fedorento.
Peço perdão aos monarcas.
Da língua pátria.
Sou hoje um refugiado.

Um sanfoneiro.

Raphael Vidigal

Pintura: obra de William Turner. 

Família é


Minha irmã fica uma arara
Quando o banana do seu irmão
Ouve dizer pelo pai
Que nem que a vaca tussa
Se dá bom dia a cavalo!
(o Tio mete os pés pelas mãos)

E minha mãe descasca esse abacaxi.


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Matisse. 

Frida


O homem precisa aprender com o cachorro
a pedir carinho só com o olho.

Não mais presentes, badulaques, artes.
Não mais sementes, alvarás, alarmes.

O homem precisa aprender com o cachorro
a dizer bom dia com sinceridade.

Não mais costume, convenção, respeito.
Não mais rotina, ambição, asseio.

O homem precisa aprender com o cachorro
Que pra ser feliz basta abanar o rabo,
Basta enfiar a cara no vento e lamber os pássaros,
Basta caçar insetos com curiosidade,
Sem saber ao certo do que se tratam.

Só de conservar certa ingenuidade.


Não é nada fácil.


Raphael Vidigal

Pintura: obra de Van Gogh.  

Beckett


barata pode ter quatro patas,
ou nenhuma.

pode arrancar um sorriso,
ou o nojo.

pode crescer no ar condicionado,
ou no esgoto.

pode te vir com as asas,
ou num embrulho.

pode que ser um inseto,
mas é a condição dos homens.


Raphael Vidigal

Pintura: obra de El Greco. 

caule



Para o poeta
é melhor ser criança.

é melhor puxar o nariz da estrela
ser amigo da borboleta
do que aprender a andar de bicicleta.

para o poeta
é melhor que haja lixo nos vasos
do que uma flor que mereça cuidados.

para o poeta
é melhor ter asilos de mandioca
subsídios de deita e rola

e uma falange de morango.

Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Paul Klee.  

Para o nada


Me abandonei.
Tirei as calças e o chapéu.
Me abandonei.
Eu ando em mim como Manoel.
Me abandonei.
Meu nome é pássaro e as asas são feitas de letras.
Me abandonei.
Sou um poema e respiro mel.
Me abandonei.
Se alguém me ofende eu retruco chamando de rei.
Me abandonei.
E só os vermes me acenderão.

Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Modigliani.