segunda-feira, 20 de junho de 2022

Relógio

 


Porque chamar esse dia de terça-feira

se ele é igual a todos os demais?

Não há esperança no horizonte,

como não havia ontem

e não haverá amanhã.

O pão segue frio na mesa da cozinha,

e a manteiga derreteu fora da geladeira.

Porque, então, chamar esse dia de terça-feira,

sendo que a cama permanece na mesma posição

com os travesseiros e os lençóis brancos da manhã,

e não há nenhuma ruga nova na minha expressão?

O cachorro ainda é o mesmo cachorro, com dentes obturados

e carregados de cáries. O mendigo vasculha o lixo. Tudo é igual.

Há mais mortos? O cheiro de cadáveres se espalhou?

Diante do espelho a velha vira moça em sua recordação?

Os ponteiros do relógio, que contabilizam as horas, não se alteraram.

Espichados e pretos seguem uma rotina compulsória com retidão.

Abri os olhos, e tudo é idêntico: o mundo pertence aos mesmos.

A taturana caça a indefesa presa no galho de aroeira.

Uma nuvem se remexe pra cá e pra lá até formar um anzol.

Sobre o cimento, ergue-se o tijolo pela mão do trabalhador.

Prostitutas cobram na esquina o preço da sedução.

Em êxtase, uma lagarta estoura o casulo para morrer com o sol.

O aborto consumiu no espírito a fagulha de vida do filho e da mãe.

O estupro se repetiu durante três dias, a olhos vistos,

e ninguém esboçou reação. Nem a avó, tampouco o pai.

Quando socorreram a vítima, havia sangue nas mãos.

A polícia espancou até a morte um negro com cara de marginal.

Os noticiários ressaltaram que ele não era santo.

Mas, afinal de contas, os santos, quem são?

Palhaços no trânsito rebobinam malabarismos para uma plateia impaciente

com o sinal. Buzina no velho olho a marca do que não foi.

Percebe? Macilento, um gato ultrapassa os limites dos muros.

Uma laranja amadurece e se transforma de novo em suco.

O beijo estala na boca, na bochecha, no coração.

O orgasmo dura um segundo. O alívio dura um senão.

A ameaça espreita, mas é o medo que comprime o torso contra a parede.

Há um gosto que se reveza na língua: mantida áspera, uma lixa de nojo e dor.

A gangorra vai para cima e para baixo, mas sua imagem é uma estátua,

parada, como é próprio da apreensão fotográfica.

A água parece uma lágrima transparente no rosto do ator.

A agonia sugere uma cumplicidade entre presa e predador.

O melado do açúcar se cristalizou. A marionete está condenada aos cordões.

A tenda de corpos e almas segue o fluxo matinal.

Então porque diabos chamar esse dia de terça-feira se ele é um oráculo

a refletir eternamente as minhas memórias, desejos e lamentações?

Melhor é mandar tudo para as calendas e vive-lo só com o instinto

como fazem as plantas, as pedras e os animais.


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Magritte. 

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