Porque
chamar esse dia de terça-feira
se ele é
igual a todos os demais?
Não há
esperança no horizonte,
como não
havia ontem
e não
haverá amanhã.
O pão
segue frio na mesa da cozinha,
e a
manteiga derreteu fora da geladeira.
Porque,
então, chamar esse dia de terça-feira,
sendo que
a cama permanece na mesma posição
com os
travesseiros e os lençóis brancos da manhã,
e não há
nenhuma ruga nova na minha expressão?
O
cachorro ainda é o mesmo cachorro, com dentes obturados
e carregados
de cáries. O mendigo vasculha o lixo. Tudo é igual.
Há mais mortos?
O cheiro de cadáveres se espalhou?
Diante do
espelho a velha vira moça em sua recordação?
Os
ponteiros do relógio, que contabilizam as horas, não se alteraram.
Espichados
e pretos seguem uma rotina compulsória com retidão.
Abri os
olhos, e tudo é idêntico: o mundo pertence aos mesmos.
A
taturana caça a indefesa presa no galho de aroeira.
Uma nuvem
se remexe pra cá e pra lá até formar um anzol.
Sobre o
cimento, ergue-se o tijolo pela mão do trabalhador.
Prostitutas
cobram na esquina o preço da sedução.
Em
êxtase, uma lagarta estoura o casulo para morrer com o sol.
O aborto
consumiu no espírito a fagulha de vida do filho e da mãe.
O estupro
se repetiu durante três dias, a olhos vistos,
e ninguém
esboçou reação. Nem a avó, tampouco o pai.
Quando
socorreram a vítima, havia sangue nas mãos.
A polícia
espancou até a morte um negro com cara de marginal.
Os
noticiários ressaltaram que ele não era santo.
Mas,
afinal de contas, os santos, quem são?
Palhaços
no trânsito rebobinam malabarismos para uma plateia impaciente
com o
sinal. Buzina no velho olho a marca do que não foi.
Percebe?
Macilento, um gato ultrapassa os limites dos muros.
Uma
laranja amadurece e se transforma de novo em suco.
O beijo
estala na boca, na bochecha, no coração.
O orgasmo
dura um segundo. O alívio dura um senão.
A ameaça
espreita, mas é o medo que comprime o torso contra a parede.
Há um
gosto que se reveza na língua: mantida áspera, uma lixa de nojo e dor.
A gangorra
vai para cima e para baixo, mas sua imagem é uma estátua,
parada,
como é próprio da apreensão fotográfica.
A água
parece uma lágrima transparente no rosto do ator.
A agonia
sugere uma cumplicidade entre presa e predador.
O melado
do açúcar se cristalizou. A marionete está condenada aos cordões.
A tenda
de corpos e almas segue o fluxo matinal.
Então porque
diabos chamar esse dia de terça-feira se ele é um oráculo
a
refletir eternamente as minhas memórias, desejos e lamentações?
Melhor é mandar
tudo para as calendas e vive-lo só com o instinto
como
fazem as plantas, as pedras e os animais.
Raphael Vidigal
Pintura: Obra de Magritte.
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