todo dia
tem outro dia dentro
espremido
ou longitudinal ele
se
recolhe no momento em que
outro dia
nasce com mais um dia
dentro: a
casca de ovo de ontem
a gema
prestes a explodir como
um sol
abrasador são fragmentos
de um
tempo que por aqui passou
antes de
nós mesmos e todo dia
de
enterro contém o berro do novo
bezerro
cada abrir de olhos para
a manhã
fresca é curado pela noite
da perda
como a cada vez que te
penso
informo o poema do recomeço
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Mark Rothko.
Nunca dê
por morto
um bicho
que ainda vive
tenha ele
as esperanças
destroçadas
como a América Latina
ou o
crânio esmagado como um indígena
decepadas
as duas pernas e os braços
presos
numa árvore que balouça no inverno
rígido ou
ensopado numa poça de sangue
como um
reles mosquito com as asas ao
alcance
das patas de um urso tibetano faminto
os olhos
abertos porém indiferentes e vazios
a boca
branca de um mingau empapado
e as
narinas fechadas por tocos de algodões
embebidos
numa substância química
nunca dê
por morto um bicho que ainda vive
ao menor
relance no ínfimo da agulha que pinga
a gota
pela seringa os olhos espasmam a boca
baba os
braços desprendem as pernas tremulam
a farinha
do crânio se ajunta feito o rabo à lagartixa
e o
mosquito injeta no urso tibetano faminto o soro
da
esperança que destroçou o sonho da América Latina
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Caravaggio.
...um
pingo de chuva sob a luz
:ainda
quer fazer rodeios sobre a asa?
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Miró.
carrego
meus mortos comigo
um
na algibeira, a outra no ouvido
não
renego deus, tampouco o admiro
...apenas
duvido...
carrego
meus mortos e sigo, convicto
na
moleira vão os olhos cerrados dele
ao
solstício sinto os lábios frios dela
...somente
suspiro...
carrego
meus ossos, carnes e peles
marcado
de aço, fuligem e remorso
entre
a sua origem e o meu destino
estou
mais com os mortos do que com os vivos...
a gente
tenta
se
prender a
uma vida
da
qual
estamos
inteiramente
...soltos...
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Salvador Dalí.
estou
cada
vez mais
convencido
de que a
existência
de deus é
um truque
do diabo
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Picasso.
desce o
décio pignatari
para
explicar
ao beócio
néscio
que
mumunhas cacarecos
e
badulaques
são como
a palavra ser
em tupi
japonês
e
hebraico
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Paul Klee.
Vô Chico,
quanta
saudade...
se as
estrelas pingassem
lágrimas
os olhos
arderiam com a
passagem
da lua...
quantas
voltas já deu a Terra
ao redor
do sol
nesse
tempo em que te guardamos
na
memória?
esse
tempo existe aí onde estás agora
ou é
apenas artifício da humanidade?
talvez, e
digo, de supetão
você
ainda esteja conosco
comemorando
o seu aniversário de 90 anos
e também
os seus primeiros anos
quando
nem existíamos
ou sempre
existimos todos e nunca
percebemos
que a contagem
não
existe entre sois estrelas luas e nuvens...
com seu
corpo magrinho
com um
chapéu de Portugal na cabeça calva
as maçãs
do rosto levemente avermelhadas
e as mãos
gastas que abraçavam filhos e netos
e noras e
cunhados e todos esses nomes familiares
estás aí
nesse céu sem passado, presente ou futuro
acenando
como quem cata laranjas e mangas...
de cada
estrela pinga uma lembrança
que nos
molha
Raphael Vidigal
Escultura: obra de Frans Krajcberg
lágrimas
que fazem cócegas
derramam
em estalactites as
minhas
auroras, ora rubras
outrora
cor de gelatina rosa!
elas
passeiam por meu nariz
e
a bordo de um escorregador
feito
de cartilagem e ossos, as
lágrimas
que fazem cócegas
se
erguem como num picadeiro
de
lampejos e trepidações loucas!
é
o meu coração que bate tonto...
–
ou são as lágrimas que fazem cócegas?
diante
do espelho eu vejo no rosto
vermelho
como framboesa madura
uma
pequenina lágrima em forma
de
cócegas que fazem auroras...
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Matisse.
Vocês são ruins,
muito ruins.
E vocês
são fracos,
extremamente
fracos.
E vocês
continuarão
sendo
esse amontoado
de ideias
espúrias,
porcas e
delinquentes,
sem um
pingo de imaginação
e
criatividade, porque vocês
são os
engravatados da realidade.
A quem
deixo o meu desprezo,
sincero,
e um ramo de cravos falsos.
Raphael Vidigal
Pintura: obra de Goya.
