terça-feira, 19 de novembro de 2019

Incenso



O recanto escuro e úmido
entre os mais recônditos e
curvos, no meio de tripas,
esmolas, intestino grosso,
baço, fígado e furúnculo
é onde guardo o seu choro
de despedida e aquela fina
lágrima que não se sabe
como mas molha os meus
interstícios de cimento e húmus.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Goeldi.

Melado



Tenho o espírito acordado e doce,
pronto para uma primavera mansa.
Deitado sobre as ramagens da praça,
as folhas me enovelam numa valsa.

As fibras coagulam em seu compasso.
Os pés estão descalços e as mãos
alcançam algo inalcançável,
 então suspira em meio a um branco

cor de açúcar sem reparos.
Alargam-me os ombros e as cócegas
se espalham pelo corpo, começam
pela alma e enfim se encontram.

Contraem-se em espasmos.
Os músculos dos óvulos.
As convulsões do parto.

O mel que era das flores
espirra uma criança mole e fraca.
Agora tens um novo e fugaz refúgio:
O mundo e seus odores

e nada
deterá o seu naufrágio.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Picasso.

Sepultamento



Num relance o vejo amedrontado.
Diante da maquinaria do mundo.
É obtusa a tentativa de escapar.
O robusto espaço comprime o
seu pequeno corpo. O barulho
não cessa um minuto e o filhote
está morto. Tê-lo salvo seria mais
digno do que escrever esse poema.
Sua morte é inútil como qualquer outra.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Modigliani.