sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Tatuagem


De tanto
dar murro
em ponta de faca

Abriu
o coração
com a unha

Canivete = Figura de linguagem

Murro – M = URRO



Raphael Vidigal

Imagem: obra de Paul Cadmus. 

Verdade


O menor barulho desperta o elefante.
Nenhuma árvore é alta o bastante para que não suba a formiga.
O cachorro enxerga melhor com as orelhas.
A cobra escuta pela barriga.
O lobo detecta a morte com o dente.
A vida na flor é imóvel e resiliente.
(a abelha cobiça o seu sabor pelo cheiro)
Assim como São Francisco
poetas estão próximos dos bichos...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Artemisia Gentileschi. 

Colina


Por vir ao mundo como um velho,
nasci saudoso.
E com a saudade eu trouxe as dores
que conhecia de outras nuvens.

O que em meu rosto é ruga,
marca e fundura
não é senão o tempo de outros mortos
já enterrados em meu peito jovem...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Odilon Redon. 

Sem título (provisório)


Flexão:
Quem não se acha um engodo,
Está enganado.

Inflexão:
Quem não se considera um engodo,
Está enganando.

Reflexão:
Crer ou não crer,
Eis o engano.



Raphael Vidigal

Desenho: obra de Giuseppe Arcimboldo. 

Harpa


Ninguém abriu a porta do meu sonho.
As paredes brancas só refletiram de
Soslaio o sol. As marcas dos pingos
Das chuvas permaneceram e cravaram
Mofos sobre o interior do quarto amplo
Desinfetado e anestesiado com o pavor
Do branco que é a ausência médica
E cirúrgica.
Permanece só feito órfão
o sonho feito de vértebras
e músculos
que agora baba
e
mal sustenta
o peso da dentadura
na boca feito quarto branco

Ao fundo o som de uma harpa lembra a promessa dos anjos...
Ninguém abriu a porta do meu sonho. Só a chuva encosta o seu
busto na maçaneta ainda intacta à espera do roçar do outro, pois
o sol é apenas um reflexo na superfície branca e inanimada como



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Marc Chagall.

Duro


É a fome que me chama para o mundo.
Com um chamado de dentro, arrastado
e mudo. E eu, feito de carne e de osso,
aceito esse primitivismo do meu corpo.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Edward Hopper. 

Inalação


se deito
não me levanto

se canto
engulo o choro

estou à deriva
no oceano

com uma esperança
em cada olho


Raphael Vidigal

Pintura: obra de William Turner.

Desesperança


Os anos se atravessam sobre nós.
Passam sobre os trilhos sem trenós.
E as lembranças escoam
entre os dedos de um
menino que acredita em Papai Noel.
Mato uma a uma minhas obsessões
e fico a perscrutar o pior de nós.


Raphael Vidigal

Imagem: obra de Van Gogh. 

Viagem


o que é a morte
para os que sonham?
se os incrédulos argumentam
que a derradeira és o negro torpor
do abandono aos pensamentos
e do corpo...
como convencer os que
sempre sonham
de que haverá o completo
esquecimento
o fim sem rumo?
a inconsciência plena?
a ausência de tudo?
se a cada morte lenta
e cotidiana
pois que é deitar-se a morte
para os que sonham...
e dormir se faz eterno
em lentos e indefiníveis contornos
a morte só pode ser dormir
(repleto em sono)
se sonhar é o mesmo
que estar morto...
e a cada nuvem de prata
por cada sol maluco
com sua língua pra fora
feito cachorro...
se abana a língua
e acorda-se: na mesma cama –
sonhar é o mesmo que estar morto.

Raphael Vidigal


Imagem: fotografia feita por Mathilde Weil em 1901.