segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Quando tudo desaparecer



POR QUE SOMOS COADJUVANTES DE UM PROTAGONISTA INVISÍVEL?



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Clara Albinati.

O sol áspero



Por saber que o alívio existe
não crer em redenção.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Clara Albinati.

Perda


Tenho o que tenho, mas tenho
principalmente o que perdi.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Egon Schiele.

Eterno



O menino que vendia laranjas.
O homem que dava tiros contra
o muro, para espantar moleques.
O senhor calçado em sandálias
de couro, tão bom. É o meu avô.



Raphael Vidigal

Imagem: Arquivo Pessoal.

Oração para o vovô Chico



Nada nos prepara para a morte
Nem a doença, nem a idade
Quando finalmente ou
Rapidamente chega
O espanto da morte é igual.
Uma manhã indo para o trabalho
A morte correu para me alcançar
E disse baixinho, no meu ouvido: vim buscar o teu avô.
Então não mais o riso franco,
O olhar sereno,
A fala doce, recheada de ironias,
Os modos de criança
Que dizia o que pensava
Amaciando o peso com humor
A lenta caminhada
Que desacelerava carros e relógios de pulso
O dedo pousado sobre o queixo para lembrar do esquecido
A face rubra, vermelha como um pimentão,
Quando a emoção lhe alcançava a alma?
A Vida apareceu de pronto
Então compreendi
Mais calmo
É exatamente o contrário
Agora condenso esses momentos
Com a luz eterna do que se foi.
O vovô Chico dos meus 12 anos
Que agarrava as bolas que eu chutava no gol
É o mesmo que, aos 88,
Caminha com calma e, com a mesma calma,
Atravessa a rua de sua casa
Ignorando qualquer importunação.
Para sempre os seus pés têm asa
E o asfalto por onde passa
São nuvens feito uma rural...
Onde cabem todos os filhos,
Netos, a bisnetinha Olívia,
Irmãos, irmãs, primos e primas,
Amigos, amigas, cabe até o Juvenal
Tios, tias, genros, cunhados e noras,
O seu papai e a sua mamãe,
Anjinho Gabriel, Vovó Lena
E os próximos que virão.



Raphael Vidigal

Imagem: Arquivo Pessoal.

Pardo



Será que o meu
destino já está
traçado?

E eu apenas
O preencho
Ao largo?

(Feito um boneco
de ventríloquo
a mão de Deus
guia o pároco)

(feito uma tartaruga
no casco – caminho
em passos reptilianos)

(feito o globo ocular
de um cego
onde toda superfície
é branca)

(como no útero
infértil – como
na seca terçã)

(como o silêncio
do não
como o barulho
dos vãos)

(como quando o
abismo estremece
quadris do passado)

Não há nada
dentro do
envelope pardo...

a não ser uma mão
cansada
cheia de verrugas...

diante de uma boca
aberta
nutrida de cáries

mordo a maçã do pecado: adão
e Eva me aparecem macacos...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Frida Kahlo.

bálsamo



já não
devemos
nada um
ao outro

talvez por
isso a vida
tenha se
tornado gorda

como o óleo
que molha
nossas banhas



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Artemisia Gentileschi.

Guarda-chuva



o contorno
dos olhos

o vazio
da boca

o espaço
em
branco
da barriga

tudo
prenhe
de
esperança



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Renoir.

Angélica



o peito é um chafariz
jorra leite para a boca faminta
a arquitetura esférica
guarda a placenta
proteínas, nutrientes, sangue...

a bolsa estoura...
as pernas se
abrem – tudo se dilata
uma criança
mama

o peito é vazio
a arquitetura, vaga
dentro de uma grávida
há apenas silêncio
e lágrimas



Raphael Vidigal

Imagem: cena do filme "O Bebê de Rosemary", com Mia Farrow.

Nau



Imobilizado pelo tempo.
Carrega um certo tédio
na voz.
Querer culpar outro
ser humano igualmente
frágil para justificar
nossas cruzes?

A poça causada
pela chuva
recebe cada gota
preta feito óleo...

Uma a uma
elas adensam a poça
até se tornarem
nós



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Gauguin.

neblina



uma esfera
bate na outra
e permanece
vibrando
escorre a areia
na ampulheta
o ponteiro da
bússola aponta
enquanto o meu
cérebro entende
tudo o rosto no
espelho pergunta:
onde está deus
quando morre
uma criança?
onde está deus
quando o amor
acaba? o que é
deus quando a
saudade avança?
uma esfera bate
na outra
e continua
vibrando
escorre a
areia na
ampulheta
enquanto
a bússola
aponta



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Gauguin.

Penumbra



Eu não compreendo a vida,
e isso me é perturbador.
A gente vive com uma certa
Ilusão
de que a morte nos trará
respostas.
Mas e se não trouxer?
E se a gente morre,
tem consciência de
que está morto...
e continua sem
compreender?
Talvez um passarinho
Venha beijar com o seu
bico o seio da minha
angústia.
Por quanto
e só,
eu continuo, vadio, a
trocar as Minúsculas
pelas maiúsculas, e
a esperar uma
penumbra doce.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Gauguin.

Símio



Por uma realidade
mais Utópica
e um pensar
menos arcaico
Deixai pra trás
o obstáculo e
abraçai o Orangotango



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Gauguin.

Nascimento



romper a casca do sonho,
do primeiro ao último olho
arreganhar a mandíbula
até o sol estar roxo...

com a perna ainda bamba...
lentamente a placenta
se desgruda entre piolhos...
esticar ao umbigo do medo

as derradeiras vergonhas,
durante as preces
ser implacável como
um coice de búfalo

e, quando finalmente nu,
aceitar a terra
sobre a carne podre
e os ossos moles



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Matisse.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

centopeia



o corpo da palavra
            respira, engasga,

diante de uma paráfrase
por baixo duma sintaxe

            o corpo
                da
            palavra

geme...
                        goza!

quando vê uma hipérbole
ao se deparar com retóricas

            o corpo da
            palavra
            espia
            por dentro
da saia, do vestido das
                                               metonímias,
                                               anáforas, e
                                               metáforas...

                                                           o corpo
da palavra
                                   sacode as ancas
            ao longo de toda prosopopeia, onomatopeia, zeugma

                        a palavra do corpo,
                        por vezes elipsa
                        noutras alitera
                                   é sempre um paradoxo
            se onde começa o polissíndeto
de fato a sinestesia opera

            a gradação do corpo da palavra
                        depende de ironia,
                                   sarcasmo,
                                      e síntese
(dada tal catacrese)

o corpo da palavra
é um pleonasmo e

            sem figura de linguagem: é a alma no sentido literário




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Joan Miró.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Alvorada



para sempre serei teu menino,
colo de mãe é como o vinho
com o tempo só se fortifica...

a gente fica velho,
mas não deixa de estar ligado
pelo umbigo!



Raphael Vidigal

Imagem: Arquivo pessoal.

Plenilúnio



deixei uma a uma
todas as minhas esperanças
a primeira foi em criança
tinha lá meus cinco anos
e uma farpa me entrou no pé
entendi como é ruim estar desprotegido
depois, já adolescente,
um marimbondo me picou o dedo,
então compreendi o palor do medo
a juventude foi mais dispersiva
perdi o amor
perdi amigos
perdi as minhas ilusões
como adulto perdi o desejo
e agora,
que observo a lua cheia
em plenilúnio no mês de novembro
percebo que perdi
o tempo




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Van Gogh.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Lixo



poesia é chover no molhado.
prosa é tirar o cavalinho da chuva.
o resto são lágrimas de crocodilo...



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Paul Klee.

Hangar



Não há mais tempo para covardias

chuva
no
meu
umbigo
logo
será
granizo

no coração
dos indecisos

Parto-me em direção ao cataclisma

            o romper da aurora me trucida




Raphael Vidigal

Pintura: obra de Francis Bacon.