terça-feira, 31 de julho de 2018

Deserto



O que há de intocável em seu sorriso?
Preso na moldura de aquário...
Talvez o tempo aja em silêncio...
E amarre feito alga os nossos sonhos...

O que há de intocável em seu sorriso?
Cada passo me desperta para teus ombros.
Parecem desprezar o que num dia...
Foste a água do deserto pra o meu corpo...

E agora, o que há de intocável neste poema?
Por certo a cor dos olhos, a voz serena.
O arfar inevitável dos teus seios,
Quando eu te encontrei em meio ao pranto...

                                   pois tudo o que me resta é a tua lembrança...

E nada me devolve pro teu colo,
e nada restitui os primeiros anos,
e nada será nunca como dantes,
o mar que navegamos no oceano...

agora encontra o lago menos brando,
agora sente o sal na dor dos lábios,
agora está sem o tal primeiro encanto...
agora hoje e sempre a flor é manto: por onde se estendeu uma dor na entranha

            Te vejo ao subir daquela tarde...
E desço o elevador num sol tão áspero...
            Cadê o carrossel da minha infância?
Que fomos só crianças e então adultos,
Soubemos desfazer nossos cadarços?

            Eu pulo feito doido em teu pescoço!
            Você me aceita própria para a dança,
            E assim desenrolamos um no outro
            E já não vejo a vastidão do mundo...

O teu vestido é o meu único consolo,
Em teu rochedo eu anuncio a fúria
de todos os povos: sou ermitão e um pouco de filósofo,
procuro compreender tuas funduras,
e quanto mais me perco em ti me encontro...

            Mas eis que a água tem um ciclo próprio...
            Não viste nem avisaste sobre as ondas,
            Impetuosas nos destinam a morte...
            Aqui em teu aquário vejo os olhos,
            Inspiro e te sinto em outro mundo: morro dentro de ti pois sou teu fungo.



Raphael Vidigal

Pintura: obra de Modigliani.

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