domingo, 29 de janeiro de 2017

Falta


Que eu esteja ausente e bem distante
Ainda vou sentir tua mão no ombro
Ainda vou beijar o teu soluço
e hei de respirar o seu perfume.

Que tu esteja ausente e em outro mundo,
Não vou nunca esquecer os nossos planos,
Jamais irei fundar outro romance,
pois tu ainda em mim me traz lembranças.

Que estejas tu e eu assim distantes...
Que a ausência seja nossa por acordo...
Não irei me acostumar a esse costume...
Ainda vou beijar e respirar – mesmo sem fome –
a falta que preenche as nossas nuvens...

pois nada é então a soma de nós dois.



Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Pierre Bonnard. 

sábado, 28 de janeiro de 2017

Estranha morte


Estranha morte a dos que permanecem em nossa memória.
Como se o desaparecimento fosse apenas suspeito.
Apenas hipótese.
Como se a definição da vida
não fosse sentença de morte.
Apenas um interlúdio.
Estranha vida a dos que permanecem em nós na morte.


Raphael Vidigal

Imagem: Obra de Matisse. 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

THE END


Por falta de um final mais criativo
Foi que Deus inventou a morte.

Como o filme
Então sem dinheiro
Então sem roteiro
E a poesia

Quando não há mais vírgula
E nem parêntese
Tanto a peça

Já sem suspense
Quanto a música

Livre de acordes

Assim a pintura
Na moldura, quieta.
Por falta de criatividade,

Foi que Deus inventou a morte



Raphael Vidigal

Imagem: Instalação de Nelson Leirner.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Descrição


Amigo das putas
e dos malandros

Poeta sem rumo
poeta santo

Grita uma imagem
em esperanto

Ninguém lhe ouve
nem colhe o pranto

Amigo das putas
e dos malandros


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Van Gogh.

Frankenstein


Os braços de Morfeu
O nariz de Cleópatra
E a orelha de Eurídice

O calcanhar de Aquiles
A língua de Hebreu
E a camisa de Vênus

A boca de Roma
O ventre de Zeus
E o membro de Afrodite

O dedo da moça
O umbigo do mundo
E o pé de cabra

A asa da cobra
O olho do ânus
E o pelo no ovo

A dor de cotovelo
O riso do lagarto
E a dor de corno

A unha da carne
O buraco cheio
Dá de ombros


Raphael Vidigal

Pintura: Obra de Picasso.

Pizza


Tive um amor platônico
Dentro de um sono morfeico
A conjuntura era mefistofélica
E o sonho acabou infausto


Raphael Vidigal 

Pintura: Obra de Max Ernst.


quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Andrei Tarkovsky


Quando chegar a minha hora
Nada poderei evitar
A ânfora já estará cheia
Os jogos estarão terminados
A lágrima virá primeiro
Em seguida o soluço convulsionado
Minhas asas estarão recolhidas
O libelo será ao som de Bach
Nada poderei evitar
Nem o lamento grave
Nem o soluço histérico
Nem a tristeza das asas
Recolhidas
Cuja única lembrança e similitude
Haverá com a cerâmica
Estática, parda
Ao redor da ânfora
E o branco do meu olhar
E o gesso dos braços
Ao redor de tudo envelopará a um estado estoico
Nada poderei evitar


Raphael Vidigal

Escultura: Obra de Brancusi. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Coisas


Não vou me derramar
Pelo leite chorado.
Tampouco lamentar a morte da bezerra.
Não hei de furar a pedra
Com a água da areia.
Nem estou disposto a tirar
A água do joelho.
Por fim e sem emenda
Pior do que o soneto
Não vou me derramar
Pelo leite azedo.


Raphael Vidigal

Imagem: Obra de Matisse.